A Sociedade da Lança - Parte 06: A decisão de Kiha

A noite para Kiha não foi das melhores. Rolou na cama várias vezes sem conseguir dormir, incomodada com a conversa que tivera com Gurin na tarde anterior. Não tinha a menor ideia de que o amigo estava nutrindo aqueles pensamentos, de tentar resgatar os sobreviventes do seu povo que ficaram nas minas do clã Jihu.

Na verdade, até ficou chateada pela revelação do goblin. Por que não havia esquecido o passado? Não tinha sido salvo e recomeçado sua vida num lugar melhor?

E se fosse ela que tivesse seu lar destruído, seus irmãos e irmãs mortos ou levados como escravos? Só de imaginar que o Bosque das Cerejeiras pudesse não existir mais, um calafrio percorreu seu corpo, arrepiando seus pelos. O fato de ter se colocado no lugar de Gurin, sentindo a mesma perda, solidão e saudade, foi a causa do conflito que não a deixou dormir.

Mesmo estabelecendo esse laço empático com Gurin, tentando entender seu coração, Kiha sabia que a questão era mais complexa por três principais motivos. Primeiro, como uma aprendiz de guerreira, não se sentia com conhecimento suficiente para passar para alguém. Segundo, os kitsune possuem sua própria forma, inerente a sua raça, de manifestar suas técnicas mágicas. Gurin sendo um goblin, não poderia aprender como manifestar esses poderes.

E terceiro, e mais importante motivo, é proibido a qualquer habitante do Bosque das Cerejeiras transmitir os conhecimentos contidos nas antigas tradições kitsune. Kiha soube que casos assim aconteceram no passado, onde os autores foram punidos.

Será que nenhum desses episódios ocorridos no passado teve um motivo plausível?, perguntava-se.

Tomada pelos pensamentos e reflexões, Kiha tomou um susto ao perceber os primeiros raios de sol invadindo seu quarto. Tratou de vestir rapidamente seu manto, comer alguma coisa na dispensa e sair de casa. O sensei Ugama disse que começaria bem cedo os treinos do dia.

A turma de aprendizes estava progredindo bastante nos exercícios de manipulação do Ki. Por isso mesmo já se sentia mais rápida e forte. Pretendia no menor tempo possível finalizar a fase dos treinamentos, participar dos testes e se tornar oficialmente uma guerreira kitsune, orgulhando de vez sua família, especialmente seu pai.

Assim que pisou do lado de fora da residência, foi surpreendida pela presença de uma das aprendizes da turma.

- Nara? O que faz aqui?

- Olá, Kiha. Desculpe aparecer de repente assim. É que estava ansiosa em compartilhar nossa alegria.

- Nossa alegria? Como assim?

- Ah, então você não está sabendo? Nossas famílias voltaram da missão. Meus pais passaram rapidinho em casa para me cumprimentar e logo depois se dirigiram ao salão do Rida-sama, provavelmente para transmitir o relatório da viagem.

- Que maravilha – disse Kiha – Meus pais e irmãos ainda devem estar com o grande líder. Afinal, foram quase três semanas de viagem, e isso requer um relatório extenso acredito.

Misturada com a alegria do reencontro com a família, Kiha sentia uma tensão. A reunião com o Rida-sama revelaria os últimos acontecimentos.

A propriedade da família de Kiha era grande e possuía duas partes, a residência e uma área construída que reunia três funções: templo em homenagem aos Três Kami, dojo de treinamento e local de reunião. Foi neste local que Kokuro, pai de Kiha, Inoue, sua mãe, Saruho e Maku, seus irmãos, se reuniram num jantar para celebrar o retorno de todos da importante missão diplomática que lhes foi confiada. Kiha, como a mais nova e inexperiente, ficou para tomar conta da casa e se dedicar aos treinamentos como aprendiz.

Kokuro, embora não esteja mais envolvido em missões diretas como combatente e estar mais voltado para atividades administrativas de apoio, devido a sua experiência, é um renomado guerreiro entre os kitsune. Esteve envolvido em muitos conflitos no passado como protetor do bosque, inclusive na última guerra contra o clã Momoke, há quarenta anos, onde liderou as forças kitsune para expulsar os invasores.

Por isso mesmo o pai de Kiha traz inúmeras cicatrizes de batalha que ele carrega com orgulho. Atualmente sendo um dos conselheiros do Rida, Kokuro é um defensor das tradições, apoiando desde sempre o isolamento do povo-raposa e sua pureza diante das demais raças do vale. E é justamente no que se trata à pureza racial, que sua relação com a filha se manteve distanciada.

Quando Kiha nasceu, há dezesseis anos, ela trouxe consigo uma marca rara em seu corpo. Ela nasceu albina, com os pelos totalmente brancos. Para muitos anciões, incluindo seu próprio pai, isso era um sinal de fraqueza, um auspício de que a criança não carregava a essência dos kitsune, com seus pelos alaranjados, uma herança da própria Sakusen-sama, A Primeira.

Durante o jantar, Kiha, a mãe e os irmãos mataram a saudade com olhares e afagos e conversaram bastante sobre a longa viagem. O pai acompanhava tudo em silêncio enquanto comia.

- Não via a hora de vocês voltarem – disse Kiha – Já estava me sentindo solitária nessa casa tão grande.

- Fala a verdade. Você adorou esse tempo longe das chateações do Maku – falou Saruho,o irmãos mais velho.

- Ah, cale a boca, Saruho – respondeu Maku, o irmão do meio – Você sabe que é o mais birrento e enjoado de nós três. Não parou de falar nem quando passamos por Amenawara.

- Nossa, que incrível, vocês viram a grande Amenawara – disse Kiha. Imaginava como seria a sensação de ver a maior montanha do grande vale. Repleta de histórias e lendas antigas.

- É sensacional, Kiha. Parece que vai tocar o céu de tão grande, não é mãe? – Maku falou com empolgação levantando os braços e gesticulando como a montanha era gigante.

- Sim, de fato é uma imagem para nunca esquecer. Dizem as lendas que foi em Amenawara que a deusa do sol Amaterasu e o deus da lua Tsukuyomi construíram seus tronos e supervisionaram o início da vida em Endo.

- Na próxima viagem, quando tiver terminado seus treinamentos, poderá ir conosco e ver com os próprios olhos, não é, pai? - perguntou Maku.

- Enquanto continuar agindo irresponsavelmente, envergonhando nossa família, nunca fará viagem alguma – disse o pai com ar severo. Todos na mesa silenciaram, menos a mãe.

- Calma, Kokuro. Vamos aproveitar nosso momento. Já conversamos com nosso líder e sabemos de sua opinião sobre o assunto.

- Sim, sabemos disso. Mas eu tenho minha própria opinião sobre o assunto. Nunca imaginei que minha filha fosse simpatizar por uma criatura menor, um bakemono. Por que, Kiha?

Nervosa e de cabeça baixa, Kiha estava totalmente constrangida pela interpelação do pai no meio do momento alegre à mesa. Mas sabia que uma hora ou outra teria que falar sobre isso com ele.

- Desculpe, pai. Quando tomei a decisão de defender Gurin…

- Gurin? - interrompeu Kokuro – Então esse é o nome dele agora? Que eu saiba aquela raça não dá nomes aos filhos.

- Sim, pai, esse é o nome dele. E foi eu que dei – Kiha estava tensa, mas ao ouvir o pai falando daquela forma do amigo, não evitou que uma pequena dose de enfrentamento viesse a tona.

Seus irmãos também estavam surpresos com o fato, percebeu. Sua mãe, como sempre, escutava tudo de forma serena, de olhos fechados como fazia.

- Então foi você. Me parece que o nível de intimidade já é grande. Você sabe que trazendo aquele bakemono para nosso bosque, acabou de se amarrar num laço de responsabilidade?

- Sim, pai. O Rida-sama nos convocou pessoalmente para falar sobre isso.

- E isso é correto, Kiha? Sabe o que os anciões estão dizendo por aí? Que minha família pode cair em descrédito caso aquela criatura traga algum tipo de problema. Você sabia que os goblins costumam roubar tudo de valor que conseguem ver, que são sorrateiros e enganadores?

- Não é o caso do Gurin, pai. Ele não faria nada disso. É muito agradecido por eu ter salvo sua vida contra os samurais e até hoje vem ajudando em várias atividades na aldeia.

- Você não sabe nada sobre goblins, garota. Já enfrentei muitos em minha vida, e muito maiores do que aquele.

- E o senhor não sabe nada sobre o Gurin – num extremo esforço de arrancar o mínimo de coragem para dizer aquilo, as palavras só conseguiram sair num sussurro. Enfrentar seu pai dessa forma não era nada bom, mas, mesmo sem entender direito, sentia que precisava fazer.

- Não me desafie, pequena kitsune – disse o pai num tom mais agressivo, chegando a bater na mesa com o punho – Repito, não sabe nada sobre goblins, mas eu sei sobre você. Sei que não se dedica o suficiente aos seus deveres como aprendiz, como kitsune e como membro desta família. Se não bastasse ser…..

- Kokuro! - foi a vez de Inoue abrir os olhos e aumentar a voz. A mãe de Kiha era uma guerreira de três caudas respeitada. Por isso se sentia tranquila em falar assim com o marido.

- Ser o que, pai? Assim, como eu sou, diferente de todos. O senhor nunca aceitou a minha diferença. Nunca farei algo suficientemente honroso para você, não é? - Kiha falava aos prantos.

- Se um dia fizer, mostrar que tem capacidade, quem sabe eu mude de ideia – disse o pai, a olhando os olhos.

Não aguentando mais uma vez o olhar de desprezo do pai, Kiha levantou-se e saiu chorando para a parte externa da casa. Seus irmãos estavam calados. Já a mãe, Inoue, também levantou-se, não sem antes encarar seriamente o marido, e saiu atrás da filha, encontrando-a no jardim.

- Eu sei que as vezes ele fala além da conta e se excede. Terei uma conversa séria a esse respeito, não se preocupe. Mas peço que tenha paciência. Quando você terminar seus treinamentos e se formar uma guerreira defensora do bosque, ele verá o quanto é especial – disse Inoue.

- Eu sou a melhor aluna do sensei Ugama. Luto e traço as melhores estratégias em toda a turma. Mas isso nunca será suficiente para o grande guerreiro Kokuro, o Garra de Prata. Acha que sou uma desonra para a aldeia por ter nascido assim, branca – As lágrimas não paravam de rolar em sua face.

Inoue, vendo o sofrimento da filha, abraçou-a com carinho. Seus olhos também estavam marejados.

- Não fale assim, minha raposinha. Deixe o tempo se encarregar das coisas. Terei uma boa conversa com seu pai e tudo vai se apaziguar.

- Não, mãe. Meu pai é um guerreiro poderoso e orgulhoso. Palavras não funcionam com ele, somente ações. Precisa de provas.

- Do que está falando?

No dia seguinte Kiha acordou cedo, bem antes do sol nascer, e se dirigiu à cabana de madeira que fora dada à Gurin por ordem do Rida. Era pequena, mas para seu tamanho servia muito bem em espaço. Kiha sabia que o amigo provavelmente estava acordado, pois havia descoberto que os goblins precisavam de poucas horas de sono para renovar as forças. Eram seres realmente resistentes.

Como esperado, Kiha o encontrou preparando a mochila de trabalho. E com uma pá de jardinagem na mão, já estava pronto para realizar alguma atividade na aldeia. Ao vê-la, exibiu uma expressão de espanto.

- Kiha? O que faz a essa hora acordada? - o goblin viu a amiga retirar alguma coisa de uma mochila que carregava. Eram dois grandes punhais.

- Começando a provar que posso ser alguém respeitado. Bem, você disse por esses dias que não tinha as poderosas garras dos Kitsune, mas acho que isso aqui pode ser um belo substituto.

- Do que está falando, Kiha?

- Estou dizendo que te darei as próprias garras e vou treiná-lo a usar. O que acha?

Gurin estava sem acreditar que Kiha tinha dito aquilo. A amiga tinha aceitado seu pedido. Um grande sorriso foi sua melhor resposta.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 18/07/2019
Reeditado em 21/07/2019
Código do texto: T6699075
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