Vida não Vista

Passando pela trilha, um asno que pastava com a cabeça entre os arames, sorriu-me, mostrando os dentes cariados pelo tártaro incrustado. Como não falava seu idioma, soltei um relinchado ensurdecedor.

Todavia, juro que gostaria de saber dele porque nunca fora ao dentista tratar àquelas cáries horríveis, fazer uma limpeza geral de sua dentição e como não bastasse, colocar aparelho para alinhá-los. Ficaria tão bonito! Certamente o novo "look" faria bem ao seu ego, não menos, elevaria sua autoestima de asno solitário. Após repetidos encontros, hoje somos amigos inseparáveis; e passando por lá, não deixo de parar para uma prosa. Asnos são bons de papo.

Um dia desses, o quatro patas bom de prosa contou sobre um cão sarnento vira-latas. Falou-me que ao passar alí, não perde a ocasião de importuná-lo. Disse que o energúmeno, fica latindo, rosnando, arreganhando os dentes enfurecido. No entanto, não sabe o porquê desse ataque, pois não é de fazer mal, nem à uma pulga ou um berne, que aliás, estão lhe tirando o sono. Engraçado que ele fala essas coisas cabisbaixo, ou olhando o horizonte ao longe. Penso que sente-se envergonhado por ser relapso, desleixado com o seu corpo.

Como sempre, ouço que o capim do vizinho é mais verde que o capim do pasto dele. Também não deixa de lamuriar sobre a perda da besta Ruana, que segundo ele, partiu com outro numa noite de lua cheia.

Incrível como nossas experiências de vida são semelhantes. Lógico que não digo tais coisas para ele. Prefiro ouvir; porém, enquanto ele parece-me infeliz, chateado, depressivo com a situação, a liberdade para campear novos quinhões de terra, foi a melhor coisa que me aconteceu.

Embora não entenda, às vezes digo para ele que campear novos quinhões, é muito "bão Sebastião". Completo, dizendo que li num artigo do filósofo Mutagambi, que ninguém, ser nenhum deve limitar, seu limitado quinhão.

Ele murcha a orelha e olha-me de soslaio. Até agora, não sei seu nome, mas garanto que é um grande amigo! Um singelo amigo de fisionomia serena. E enquanto ele me sorri, eu relincho o adeus e até breve. Mas continuo preocupado com sua dentição; e o pior, sem meios de comentar, sugerir um tratamento para ele. Imagino que ficaria tão bonito com os dentes claros, alvos e alinhados!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 15/08/2019
Reeditado em 15/08/2019
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