Congelante

Eu abri os olhos calmamente. Havia acordado por nenhum motivo em especial. Lá fora ainda estava claro, apesar de muito nublado. Calcei-me e peguei as luvas que eu havia deixado sobre a cadeira. Saí do quarto e logo a encontrei. Ela já devia estar acordada há algum tempo. Não chovia. Cumprimentei-a. Ela respondeu com os olhos e sorriu. Perguntei-lhe se estava ansiosa. Novamente, uma resposta silenciosa. Mas, sim, ela disse que sim. Desisti de fazer mais perguntas. De todas as pessoas que eu havia encontrado ali, ela, sem dúvidas, era de quem a companhia mais me agradava. Apesar do silêncio. Ela não falava muito, mas seu rosto tinha sempre uma expressão despreocupada. Era o suficiente. Eu não cheguei a perguntar, em momento nenhum, seus motivos para querer passar um mês no gelo. Eu não havia dito os meus motivos também. Por mais banais que fossem. Eu só queria me desligar do mundo por um tempo. Cheguei a pensar que esse também pudesse ser o motivo dela, mas parecia muito improvável. Ela era a personificação da tranquilidade. Por que iria ela querer fugir da realidade? Enfim, não cabia a mim ficar fazendo suposições. Naquele momento, tudo que eu queria era conhecê-la melhor. Trinta dias parecia mais do que o suficiente. Mas, ao mesmo tempo, trinta dias parecia muito pouco.

Só fui perceber que já havíamos chegado porque ela virou as costas e correu para o quarto. A paisagem era linda, não importava para onde eu olhasse. Toda aquela água, todo aquele gelo. Todo aquele céu. O tempo começava a abrir. A luz refletia nas nuvens, refletia no gelo, no mar. Tudo parecia harmonizar perfeitamente. Eu nunca havia visto nada como aquilo. Entrei sem conseguir tirar o sorriso do rosto. Éramos um total de oito pessoas, sem contar os tripulantes. Oito alunos? Oito voluntários? Oito curiosos? Oito pessoas. Não acho que eu conseguisse traçar um padrão ali. Aliás, definitivamente eu não conseguiria. Eu não conhecia nem a única pessoa que eu me dispus a conhecer. O máximo que eu sabia a respeito dela era seu nome. Era um nome comum, mas era também um nome lindo. Não me lembro de ter conhecido nenhuma outra pessoa com aquele nome. Pessoas de mentira não contam. Pessoas famosas, celebridades. Pessoas inalcançáveis, intocáveis. Essas não contam. Mas isso não importa. Nomes não importam. Seguimos os oito para dentro da instalação.

O centro onde passaríamos aqueles trinta dias era excepcional. Enquanto lá fora fazia um frio congelante, lá dentro começou até a dar calor. Teríamos cada um um quarto. Oito quartos. Quatro de cada lado do corredor. O número do quarto dela era três. O número do meu era cinco. Esse tipo de coisa insignificante me deixava bastante feliz. Os quartos tinham janelas. O meu, pelo menos, tinha. Não acho que eu precise dizer novamente o quão linda era a vista. Era branco que não acabava mais. Deram-nos por volta de meia hora para guardar tudo que quiséssemos guardar. Teríamos uma palestra introdutória, uma espécie de orientação. Eu não sabia o que esperar daquilo tudo. Após tudo ser esclarecido, fomos liberados pelo resto do dia. Antes que eu perdesse a oportunidade, convidei-a para comer e ir passear lá fora. Ela aceitou. Em silêncio, como eu já esperava.

Apesar do gelo, o tempo lá fora era incrivelmente agradável. Ela guiava o passeio, como se já estivesse familiarizada com o lugar. Andamos por um bom tempo, vimos até pinguins no caminho. Eu não conseguia parar de sorrir. Não só por conta dos pinguins e da paisagem. Até que chegamos a uma espécie de lago. Congelado. Uma camada não muito grossa de gelo cobria a água. Não era o mar. A água não estava em movimento. Muito pelo contrário, parecia completamente imota. Eu não sabia bem o que faríamos ali. Parecia perigoso. Como se eu não estivesse confuso o suficiente, ela descalçou-se e pôs-se a tirar as grossas camadas de roupa que usava. Só o que restou foi sua roupa mais interna. Algo como uma roupa térmica. Talvez uma roupa de mergulho. Eu não sei como ela fez aquele buraco no gelo. Pode ser que o gelo já estivesse quebrado e eu não tivesse percebido. Ela mergulhou. Eu estava paralisado. Congelado. Não consegui ter reação nenhuma. Após uns longos minutos, ela emergiu trazendo consigo uma bolsinha marrom de pano. Ela não parecia sentir frio, apesar de estar encharcada. E continuava sorrindo, com aquela expressão calma e despreocupada, como se nada tivesse saído do normal. De dentro da bolsa ela tirou um pedaço de gelo. Parecia gelo, pelo menos. Era transparente, como um cristal. Conforme ela segurava aquilo, seu corpo parecia secar. A água já não escorria mais, como se estivesse numa temperatura tão baixa que congelasse sem muita dificuldade. Seu olhar era penetrante como uma estaca de gelo. Mas, apesar disso, eu senti meu rosto corar conforme ela olhava nos meus olhos. Ela suspirou e sorriu.

Eu abri os olhos calmamente. Estava em casa. O quarto estava muito frio. Provavelmente por causa do ar-condicionado. Levantei e percebi que havia uma notificação no meu celular. Era um e-mail para comunicar que eu havia sido selecionado para um programa de trinta dias na Antártica. Trinta dias no gelo. Eu e mais sete pessoas. Eu não poderia ter acordado com uma notícia melhor. Algo dizia-me que aquela seria uma experiência inesquecível.

Pedro Paz
Enviado por Pedro Paz em 05/10/2019
Reeditado em 06/10/2019
Código do texto: T6762126
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