A evocação

Uivos insistiam na floresta. Era noite e fazia frio, a Lua cheia bem visível no centro da escuridão. Contudo, nenhum animal em vista, entre os pinheiros apenas um homem, em trajes escuros, túnica comprida, capuz e sapatos, seu rosto encoberto pelas sombras. Com uma farinha cujos restos ainda tinha em mãos, moldara um círculo à sua volta e gritava sem parar os nomes do espírito que pretendia evocar e daqueles que deveriam protegê-lo. A uma certa distância dali, seu desafeto, aquecendo-se próximo da lareira de sua casa no campo, começou a tossir; não demorou para que com a tosse saíssem golfadas de sangue.

Em paralelo, tinha início na floresta a ira dos ventos, logo acompanhados por inverossímeis fagulhas; temendo que seu círculo fosse desfeito, o mago aumentou ainda mais o volume da voz e intensificou a energia de suas palavras, arte que aprendera com bastante estudo. Quilômetros além, o inimigo perdia a vida sem saber o porquê; seu coração parara de bater e seu chão se manchara de vermelho-escuro, para o desespero de sua esposa e filhos. Todavia, nada de tranquilidade para o evocador: chamas se elevaram e um inexplicável (menos para ele) incêndio se iniciou na mata. Raciocinou, num primeiro momento, que de qualquer forma teria que ficar, que o fogo não iria feri-lo, pois fazia parte do ritual, mas a coragem não duraria muito, disparando para fora do círculo.

Entre as labaredas, estava de pé aquele que na verdade as expelia, uma criatura bípede que lembrava o licantropo das velhas lendas, um terrível lobisomem de pelos cinzentos, com algo a mais em relação a este: olhos vermelhos incendiários e uma cauda de serpente. Corvos e corujas que não pareciam temer as chamas pousaram sobre os galhos das proximidades.

O monstro apareceu de súbito em frente ao mago – que suspendeu sua fuga – , cruzando os braços e encarando-o com desdém, para em seguida lhe falar, com uma voz grave, soturna:

- Não queria os meus favores? Pois aqui estou. Já matei o seu maior rival. Mas não me parece alguém digno de me dar ordens...Como posso respeitar um covarde? Um velhaco não pode ser meu mestre.

- Amon...Um dos 72 grandes espíritos! Realmente veio!

- Mas a sua fé foi tão pequena que nem conseguiu permanecer em seu círculo. Lá, você era a autoridade absoluta. As chamas não ultrapassariam o limite. Agora, diferentemente, preciso contê-las para que não o devorem. Me dê um bom motivo para continuar a retê-las.

- Eu...Ainda sou o mestre deste ritual! Não retrocedi...Em meu objetivo. Portanto, terá que me obedecer...Espírito inferior. - Jogou para trás o capuz, liberando o olhar, que precisava ser poderoso e decidido, concentrando toda sua força anímica; entretanto, estava trêmulo e gaguejava, sua testa e sua nuca ardendo como se um ácido tivesse sido jogado sobre estas partes de sua cabeça.

- Jamais serei inferior a você. Homenzinho!- Antes que o evocador desembainhasse a espada que tinha em sua cintura, as labaredas avançaram e atacaram sua veste e seu corpo; seus berros de dor ao menos foram breves como seu sofrimento, consumido em segundos, assim como a arma magicamente imantada terminou derretida antes de ser utilizada.

Lobos brancos e cinzentos de olhos rubros se juntaram em volta do demônio, que com a mão esquerda estendida recebeu o espírito do magista fracassado, de início idêntico ao corpo físico deste, embora transparente, aos poucos tomando a forma de uma energia azul-clara que se enrolou em seu braço musculoso e peludo, cujas veias engrossaram assim que terminou de absorver aquela vida. A alma do imprudente passaria a ser sua escrava; se não pela eternidade, era certo que por um tempo considerável.

Liberou um sorriso de êxtase; os canídeos, uivando ao seu redor, formaram um círculo. O incêndio na floresta foi parando, à medida que Amon desaparecia, junto com seus acólitos.

Na manhã seguinte, ao entrar na mesma mata, um caçador sentiu um ar tão pesado que desistiu de caçar no dia, por mais que houvesse um belo sol no céu. Algo lhe dizia que aquela manhã ensolarada não era nada confiável, que existia algo de terrível e enganoso por trás da luz do dia. Preferiu voltar para casa, abraçar sua mulher e lhe dar um beijo, com muita vontade de conversar e se limitando a comer um pão seco no almoço.

- O que você tem hoje?- Ela perguntou.

O homem não soube responder.

Marcello Salvaggio
Enviado por Marcello Salvaggio em 13/12/2019
Código do texto: T6818322
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