O fantasma da Rua dos Judeus

O fantasma da Rua dos Judeus

Alexandre Santos

Ele morrera a tanto tempo que já não lembrava de como era quando estava vivo. Teria sido como os navegadores portugueses, que, eivados de ambição, não titubeavam em castigar e, mesmo, matar em busca de mais terras e ouro? como os caetés, que, sem cofre ou baú, corriam livres pela costa dourada, desfrutando as dádivas e armadilhas da natureza? como os negros, que, arrancados sem piedade da mãe África, choravam o banzo até a morte no tronco? Talvez, quem sabe, tivesse sido como os cristãos novos, que, ao largo do Santo Ofício, sonhavam o Novo Mundo como um tesouro virgem a ser explorado? Talvez tivesse sido como os holandeses, que, no embalo do arremedo de globalização, impulsionavam as Companhias das Índias no rumo de riquezas pouco importando a quem pertenciam? Talvez tivesse sido um padre, como aqueles que, às escondidas e sob a proteção de mistérios assustadores, bolinavam e fornicavam índias e negras, ensinando-lhes o Pai Nosso, ou um capitão ou donatário, como aqueles que, em troca de riquezas, empurravam a coroa lusitana para o ocidente, estufando o meridiano que definia o Tratado de Tordesilhas? Sinceramente, não sabia.

Não sabia sequer se tinha sido branco, negro ou pardo, nobre ou vassalo. Sabia, apenas, que morrera há muito tempo, pois lembrava detalhes do antanho. Lembrava de Duarte Coelho singrando as águas claras de Santa Cruz para erguer Igrejas em Igarassú e, de lá, voltar à costa para descobrir o morro da vista linda onde construiu a vila principal da Capitania. Lembrava da invasão dos flamengos, das chamas que consumiram Olinda, dos palácios e jardins que embelezaram o novo Recife. Lembrava de gritos e movimentos libertários, da Convenção de Beberibe, dos Mascates, do Padre Carapuceiro, do Frei Caneca e tantos outros. Lembrava tanta coisa que não sabia como podia caber tudo aquilo numa só cabeça. Vagando a esmo pelo Recife Antigo, território de penitência que lhe fora destinado, olhava em volta e via, com espanto, como tudo tinha mudado desde que ali chegara.

No tempo em que estava vivo o mundo era diferente. O céu mais azul, as noites mais estreladas, o clima mais ameno, as águas mais claras, as florestas mais densas, o ar mais leve, os rios mais limpos, o oceano era límpido, cantos e cores de pássaros animavam as campinas, até as pessoas pareciam mais felizes. Será que as coisas tinham piorado?

Olhou em volta e viu carros velozes, roupas ousadas e coloridas, iluminação artificial, aparelhos minúsculos que serviam, ao mesmo tempo, de telefone e de câmera filmadora, rádios estéreos, televisões coloridas, transmissões instantâneas, geladeiras, computadores, prédios de formatos estranhos, altos e de paredes estreitas. Que mundo bom. Mas, aí, atinou ver, também, os mendigos que sitiavam a Igreja Dourada e, num estalo, concluiu que alguma coisa estava errada, muito errada. Afinal de contas, o conhecimento e as invenções trazidas pelo tempo e pelo gênio deveriam melhorar a vida das pessoas. Nestes novos dias, as pessoas deveriam trabalhar menos, sorrir mais, ter mais tempo para a contemplação, para a família. Deveriam ter mais preocupação com as outras pessoas e com a natureza.

Nada disso, no entanto, parecia estar acontecendo. Observando o semblante angustiado dos transeuntes apressados, percebeu ser aquele apenas um período de vida mais corrida, mas não tão boa como poderia parecer. Como se filósofo fosse, cogitou sobre as razões que estavam privando as pessoas das maravilhas permitidas por aquelas invenções e de desfrutar o tempo liberado pelo uso das novas máquinas. Por que, nas ruas e praças, as pessoas pareciam atormentadas? Se os engenhos faziam os serviços, por que os homens estavam sempre apressados? Talvez, Deus, em sua sabedoria, tivesse acelerado o tempo para forçar as pessoas a um novo ritmo de vida. Talvez um novo tipo de ladrão estivesse roubando aquele novo tempo disponibilizado, privando as pessoas do seu deleite. Talvez os homens estivessem preenchendo o novo tempo com coisas inventadas recentemente e que ainda lhes eram desconhecidas. Ou, talvez, simplesmente, contrariando a lógica, os avanços não visavam melhorar a vida do povo? Quem sabe? Neste mundo de Deus, tudo é possível.

Perambulando em seu interminável passeio pelas ruas e becos do Recife Antigo, o fantasma não sabia quem tinha sido, como morrera, quem tinham sido seus parentes, onde estavam seus amigos? Muitas dúvidas e nenhuma certeza. Desconfiava que não fora pessoa de virtudes ou posses. Só isto explicaria o fato de não estar no céu, gozando o néctar da imortalidade entre os puros e indultados, e, sim, na Terra, onde penava solitário há tanto tempo. Era no céu, nos jardins e alamedas do éden, onde flanavam os virtuosos, como os almirantes e capelães da armada de El Rey, e os ricos redimidos por preciosas Cartas de Indulgência, como os fidalgos da corte de sua majestade, os senhores de engenho e os mestres de campo.

Em suas elucubrações, imaginava ter morado na Ilha do Recife, talvez perto do Forte do Brum ou, quem sabe, da Cruz do Patrão ou, mesmo, do cais do porto. Que outra razão haveria para seu espectro estar confinado no Recife Antigo? Teria sido assíduo dos lupanares onde se serviam os marítimos ou um judeu frequentador da Sinagoga?

Já estava ali há tanto tempo, vagueando de rua em rua, de beco em beco, de esquina em esquina, que conhecia detalhes de todas as casas e sobrados, janelas com conversadeiras, eiras e beiras, os lampiões, os paralelepípedos europeus, a brisa marítima, os bancos venezianos, os moradores, novos e velhos, os boêmios, as mulheres da noite, os pedintes, os visitantes, as pessoas que lá trabalhavam. Sabia de tudo e de todos décor e salteado. Pelas ruas e pelas praças, pelas casas e pelos bares, sem saber da onipresença do fantasma senhor do tempo, as pessoas abriam segredos, pensando e falando alto, tornado a história um livro aberto. E, assim, sem ter o que fazer, o fantasma do Recife Antigo gastava a eternidade recordando o passado, soprando aqui e ali uma lufada ou um malquerer para assustar pecadores e imaginando o futuro escondido na curva do tempo.

(*) Alexandre Santos é ex presidente das União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural