O urso negro de Castelo Branco

A rajada de luz entrou pela janela como uma flecha atingindo seus olhos. O céu era claro e o ar frio e pesado. Ouvia apenas os barulhos de metal contra metal da ferraria e conversas genéricas no pátio do castelo. Era o dia do aparecimento da décima quinta Estrela do Inverno, aparecia todos os anos no auge da estação, de noite era quase tão brilhante no céu quanto a Lua e desaparecia tão subitamente quanto chegava. Henrique Neves estava animado e ao mesmo tempo temeroso em cumprir seu dever como herdeiro, naquele dia deveria abater um urso.

Para esta árdua tarefa contaria com a ajuda de seu pai, Eduardo Neves, Comandante do Vice-reino do Sul e Senhor de Castelo Branco, principal castelo do território. Deveriam se dirigir, após o desjejum, à Floresta Silenciosa junto de mais oito homens que serviriam de retaguarda. O ritual de afirmação da maioridade era comum entre os Neves, uma das mais antigas famílias do reino. Há 500 anos o herdeiro ao trono de Castelo Branco tem o dever de abater um urso para que do couro do animal se faça uma segunda pele na parte interna da armadura, para que os pêlos sejam trançados para fazer um manto a fim de aquecer e transmitir o espírito de grandeza do animal a quem o usa, além disso uma arma deverá ser adornada com uma parte do animal a ser escolhida pelo herdeiro, estes bens se tornarão parte da vida de Henrique e devem acompanhá-lo até o túmulo. As canções remontam que a tradição fora iniciada por Marcos O Sobrevivente, primeiro da família Neves.

Tomás D’ouro, O Rei Longevo, há cerca de 500 anos, solicitou voluntários para povoar as gélidas planícies de Aragonia, estas eram povoadas por nativos e entravam constantemente em conflito com o Vice-reino de Floresta Negra. Marcos foi o único entre 15 pretendentes a não ser consumido pela bela e mortal paisagem, como prêmio e como incentivo ao povoamento da região, recebeu a alcunha de nobre: Comandante do novo Vice-reino do Sul, além de empréstimos e mão de obra enviados diretamente da Cidade Real de Alvorada para o desenvolvimento de sua fortaleza. Escolheu para símbolo de sua família um urso negro sobre duas patas em fundo branco.

As histórias que Henrique ouvia sobre Marcos O Sobrevivente divergiam, algumas diziam que este havia matado um urso negro na primeira noite de assentamento, e por conta do animal conseguiu sobreviver dormindo dentro de sua carcaça, em outra história afirmava que ele havia sido adotado por uma ursa negra e sobreviveu fingindo ser um filhote, em uma terceira ele e uma ursa se apaixonaram e ele sobreviveu como protegido dela. - Nada disso mais importa se hoje tenho que matar um - refletiu Henrique. - Espero que seja um grande macho branco - torcia. Ursos brancos eram os mais raros, geralmente significavam o surgimento de um grande cavaleiro ou líder, que seria marcado na história do reino. Se lembrou de Fernando Neves, O Bravo, pois venceu 3 Revoltas dos Villa e saiu vitorioso do período de guerra que mais tarde seria denominado A Trinca de Gigantes.

Encontrou o senhor seu pai, Vice-rei Eduardo, no Salão Principal do castelo onde a ele estava sendo servido o desjejum, uma torta de cereja com um molho vermelho de amoras que reluzia, sendo despejado em uma quantidade que escorria pelas beiradas. - Pai não consegue comer molho suficiente. - pensou brevemente. Realmente, o Senhor seu pai quando não estava ouvindo as reclamações de camponeses tinha uma fome ávida. - Um Senhor deve sempre pecar pelo excesso de comida, tanto para si quanto para seu povo, senão ambos ficam fracos e não resistem ao inverno. O frio, deixa-nos com um apetite voraz para que o suportemos. - dizia. Apesar do apetite, o senhor seu pai não era avantajado horizontalmente e ostentava uma altura que impunha respeito, só era mais baixo que Conrado Marceneiro, auxiliar do castelo. Tinha olhos negros como o céu noturno, seu cabelo era marrom, escorrido e alcançava seus ombros, apesar disso mantinha a barba aparada Possuía uma armadura prata como o aço de sua espada, sua placa de peito era ornamentada com um urso marrom de pé sobre as duas patas, semelhante aquele que havia matado quando tinha a idade de Henrique. Ostentava uma longa capa marrom com ombreiras que subiam até quase suas orelhas e escorriam cerca de um palmo para além de seus braços.

Pai sempre pareceu justo com os cidadãos e camponeses, pelo menos estes sempre saíam com os olhos analisando o chão, quietos e pensativos após as audiências no Salão Principal. Apesar da imparcialidade aos suplicantes, sempre se mostrava afetuoso e benevolente para com as damas de famílias menores, frequentemente estas vinham ao castelo e eram convidadas a ficar por alguns dias, provavelmente pela viagem exaustiva. Tratava bem a Senhora sua mãe, Alice Neves, antes nascida Alice Carvalho, irmã do herdeiro do Vice-reino de Floresta Negra, também era amoroso com seu irmão Artur Neves. - Pai sempre foi carinhoso de sua maneira - recordou Eduardo. - Sempre tratou mãe como uma rainha, tentando fazê-la se sentir em um lar, apesar de ela não ser muito afetuosa ao frio. Brincava quando podia com meu irmão Artur, mesmo ele tendo apenas 2 invernos e não fazer muita coisa além de sujar as calças e chorar. Não me lembro de ele ter me tratado tão bem assim quando era mais jovem, mas não posso reclamar, pai sempre esteve lá quando precisei.

Remo, vá selar os cavalos, partiremos em breve, não precisaremos de muitos suprimentos. - comandou Eduardo Neves.

Remo se levantou prontamente do banco onde afiava sua lâmina e pôs-se a cuidar da tarefa. Era de uma família relativamente jovem, os Algidos. Estes haviam conquistado a confiança de César Neves, avô de Eduardo ao protegê-lo de um assassino enviado pela Coroa após a Revolta de Vichy. Desde então os Algidos se tornaram responsáveis pela manutenção de Castelo Branco e seus assuntos internos. Remo Algido era um homem baixo, cujos cabelos migraram do topo da cabeça para as costas e pescoço ainda na juventude, ostentava um negro e confiável bigode, com o resto da barba por fazer salpicada de branco, tinha olhos negros e simples, com pele tão clara quanto a neve, sempre era gentil com Henrique, ensinando a ele tarefas e percepções simples mas que já haviam causado a ruína de reis, seus ensinamentos iam desde a averiguação da comida necessária para fazer um cerco, métodos para fazer fogo com madeira úmida e jogos e desafios para que os soldados não percam o ânimo antes de uma batalha. Era um homem com suas virtudes, apesar de não ter sido educado com a cortesia de um nobre.

Quero que você olhe isso, Henrique. - disse Eduardo, já andando em direção a sala de armas. - Consegui minha armadura na mesma idade que você. Foram necessários 5 homens e meio dia para achar, cercar e abater o urso, suávamos como porcos por causa do calor. Lembro até hoje dela, era uma fêmea de cor parda de tamanho mediano, deveria ter o dobro da minha altura sobre as duas patas na época. No fim o golpe fatal foi meu e consegui que fosse limpo e rápido, fiz um favor a ursa.

Qual era a cor do urso que meu avô abateu? - questionou Henrique, imaginando como nunca havia pensado naquilo antes.

Meu pai não foi um Neves com muita sorte, acabou matando um urso cinza, não deveria nem ter herdado o trono, mas seu irmão morreu com a Praga logo depois de abater um urso negro. O governo de meu pai fora marcado pela instabilidade, uma hora o povo o amava, na outra o queria morto, diziam que tinha duas personalidades uma delas era generosa, distribuía riquezas, títulos, e organizava torneios grandiosos, enquanto sua outra personalidade era melancólica, logo se arrependia de suas decisões e se trancava no quarto para lamentar seus equívocos. Não demorou muito até que faltasse dinheiro para pagar os impostos para a Coroa, morreu quase com a minha idade, dizem que tirou a própria vida se jogando em um lago congelado, mas tenho minhas dúvidas… De qualquer modo, quero que você pense em como quer sua espada e qual adorno colocar. - completou Eduardo, em tom de lamento e entregando a Bafo de Inverno para que Henrique a olhasse de perto.

Henrique sempre gostava quando seu pai mostrava a espada. A lâmina de metal fora forjada por Inácio, o ferreiro. Esta era feita de um metal claro, onde quase se poderia ver o próprio reflexo, Inácio gostava de polir demasiadamente seus trabalhos para que estes se destaquem, em pouco tempo se tornou o melhor ferreiro de Castelo Branco. Para seu pai, Inácio criou uma arma ornamentada, que a primeira vista parece desajeitada mas nas mãos certas se tornava algo mortal. Nas mãos de Henrique a espada era desajeitada e pesada demais, quase tão alta quanto seu tórax, tinha a largura de um palmo de Henrique, seu pai a carregava nas costas para não arrastá-la no chão. Em seus treinos, manejava-a com ambas as mãos, era pesada a ponto de um golpe certeiro rasgar uma carcaça em um só movimento. Seu pai adorava testar o fio com porcos.

Está na hora de irmos, apronte-se Henrique. - disse Eduardo Neves.

Era um comboio composto por 10 homens no total mais uma carroça, atravessaram a cavalo a grandiosa porta de metal dobrado ornamentada com o símbolo dos Neves, Henrique olhou as muralhas do castelo, curiosamente construídas com pedras negras.

Castelo Branco tinha este nome pela enorme estrutura e torre que ficavam salpicadas de neve na maior parte do ano. Henrique sempre refletia após o questionarem a contradição - É como você tentar dizer se um cavalo listrado das planícies áridas é preto com branco por cima ou ao contrário. Desde sua construção Castelo Branco sempre teve neve, faz parte de sua natureza. - enquanto passavam os guardas da muralha, Brás avisou a comitiva:

Senhor, nesta manhã dois filhotes cinzas foram avistados entre as árvores, procuraram comida por um breve tempo e foram embora pouco tempo depois.

Não devem estar longe Senhor, podem ter encontrado o riacho para se alimentar. - Remo Algido sugeriu, alto e confiante.

O grupo se pôs a marchar seguindo um fino curso de água que se escondia em uma fenda de neve, o chão refletia o sol, as árvores tinham cristais e chifres apontados ao chão, a fumaça exalava da boca dos homens ao respirar. Conforme cavalgavam, o curso de água se tornava cada vez mais largo, até atingir a largura da mesa do Salão Principal, onde cabiam 30 homens sentados lado a lado. Ouvia-se um barulho de queda d’água constante que preenchia o silêncio da floresta.

Henrique só pensava em seu cavalo pisando em falso e no som de seu pescoço ao colidir com o chão. - Não posso morrer assim, não posso morrer assim - já havia andado a cavalo na neve, mas não de armadura, espada e escudo, o que o fazia pender na sela e tinha que forçar o equilíbrio constantemente.

Ali, na margem do rio. Parecem dois filhotes cinzas. - sussurrou Conrado Marceneiro, auxiliar de Remo Algido.

A mãe deve estar próxima. - completou Senhor Eduardo.

Abaixem-se! - falou Conrado Marceneiro de forma ríspida e rápida. - Tenho olhos na mãe, atrás da árvore. É uma ursa branca.

Os filhotes devem ter um pai de pelos negros. - supôs Remo Algido.

Henrique não queria ter de encontrar um urso negro, geralmente estes eram maiores, mais ferozes e sabia pelas canções que todos os Neves que mataram um urso negro tiveram mortes horrendas, foram péssimos comandantes ou trouxeram miséria a seu povo. O destino e a escolha brigavam em sua cabeça, não sabia se queria encontrar um urso negro.

Vamos flanquear a fêmea branca. Conrado, Duarte e Aleixo, separem-na dos filhotes. - ordenou Senhor Eduardo.

Henrique estava ofegante, não imaginava que um urso poderia ser tão grande. Enquanto se escorava atrás de uma árvore junto de seu pai, Félix Ferraz, Gregório Pilar e Leonel Estrela, conseguia ver a baba pingando na boca da ursa branca, esta tinha uma boca e olhos negros de um caçador, estava com o nariz coberto de sangue de peixes, a cada passo seus pelos que se camuflavam com a neve balançavam em um tipo de esplendor e magnitude raro de se ver - É realmente um animal magnífico, devem entender tanto quanto nós, apenas não cospem seus pensamentos pela boca, de certo modo são até mais sábios. - refletiu.

Socorr… - o grito alto e subitamente interrompido quebrou o silêncio da floresta.

Ouviu um grito do outro lado do riacho, seguido do estalar de ossos. Seu coração disparou, sentiu o couro da espada colado a mão e mesmo assim não parecia segura o suficiente para manejá-la, sentiu unhas compridas roçando sobre seus braços até a nuca. - O que aconteceu? - imaginava.

Temos de ajudá-los. Agora! - disse seu pai, gritando e esporeando o cavalo, mantendo a espada na mão. Sua voz era firme e não parecia dar chance ao medo.

Cruzaram as árvores a galope, a neve era profunda em alguns lugares o que tornou o deslocamento lento demais para que ainda restasse alguma esperança de encontrar com vida quem havia dado o grito. Quando chegaram à clareira, havia no chão um rastro de sangue. Ao levantar os olhos um urso negro observava Henrique. O animal estava imóvel sobre o cadáver. Trocou olhares com o urso, quase o compreendeu em sua selvageria. Era um urso negro, duas vezes o tamanho da fêmea branca, cada uma das patas com o tamanho do peito de um homem, era uma cabeça mais alto que seu pai enquanto estava nas quatro patas, não parecia ter olhos de tão negros que eram, seu focinho e patas estavam úmidos, provavelmente sangue. Estava sobre o corpo que já fora de Conrado Marceneiro uma vez, chacoalhava o corpo buscando algum movimento inesperado, mas nada obtia. Os outros homens estavam atrás das árvores escondidos e ofegantes, assim como Henrique.

Félix, Gregório, batam suas espadas na árvore, vamos tentar distraí-lo enquanto tento uma abertura para atacarmos seu pescoço. - disse Eduardo Neves com toda sua coragem de Senhor de Castelo Branco.

Ambos assentiram com a cabeça quase ao mesmo tempo e, apesar do medo estampado em suas caras, se levantaram e caminharam ao norte, pelo caminho que vieram. Moveram-se devagar, cuidando para não fazer barulho.

O urso percebeu os barulhos das espadas e andou para o norte. Henrique, Eduardo Neves e o resto dos homens seguiram o animal, sempre mantendo uma distância segura. Seu pai ia na frente para guiá-los e Henrique seguia no final da fileira, a neve no chão tornava-se um pouco mais fina, com locais onde era possível ver a terra negra congelada.

Crack.

Um galho quebrado.

O urso voltou imediatamente os olhos para o local de origem do som, atrás dele.

Deixe pra lá, vai, continue, galhos quebram a toda hora na floresta. - torceu Henrique.

O urso começou imediatamente a correr em direção a Gonçalo, que levantou a espada mas parecia congelado pelo terror, sua expressão era de desespero. Ao ouvir o rugido do urso, esboçou um movimento com a espada mas o urso chegou antes e deu uma patada em seu braço, que se torceu para trás seguido de um urro de dor de Gonçalo. A espada voadora encontrou o chão, assim como Gonçalo que se fingia de morto. Enquanto examinava e cheirava o homem inundado de dor e medo, os outros homens começaram a se mover.

Em poucos segundos o urso estava cercado e os homens ameaçavam atacá-lo, mas como um animal encurralado, rugia e postava-se ereto a fim de intimidar, tática que funcionava perfeitamente. Félix Ferraz conseguiu acertar um golpe em sua pata dianteira, seguido de um revide que quase o atingiu.

Isso Félix, tente acertar mais uma vez. - torcia Henrique, que fora impedido de ir mais próximo ao urso por seu pai.

No momento em que o urso parecia cansado, seu pai armou um golpe com fazendo um grande arco no ar com sua espada. Mirava o pescoço do animal. De algum modo a besta antecipou o movimento de seu pai e transferiu uma patada que o fez cair, foi possível ouvir o crack de várias costelas se estilhaçando ao mesmo tempo, o urso em seguida se colocou sobre duas patas e deixou a gravidade fazer seu trabalho, transferindo seu enorme peso com suas patas dianteiras ao tórax de Eduardo Neves. Estava morto. - Não, não, não, não. - era a única palavra que Henrique tinha em sua mente e repetia-a incessantemente. Todo o mundo exterior desapareceu.

Félix Ferraz, com rancor, atingiu novamente a mesma pata, seguido de um golpe de Remo Algido no tórax, o urso pendeu até cair. Estava exausto e no chão. Os homens, colocaram a ponta de suas espadas rentes ao urso a fim de evitar novas surpresas, reservaram o golpe final para Henrique. - Não me importo mais se é um urso negro, cinza ou branco, o bastardo atacou meu pai, não me importo se meu destino for amaldiçoado, eu recuso as maldições. - refletiu. Pegando a espada de seu pai no chão, Henrique olha uma última vez para aquela besta que tinha olhos inteligentes. Com grande dificuldade, levanta o cabo acima de sua cabeça, pensa, e enterra a espada na terra congelada.

Eu recuso a tradição, não quero nada desse animal, ele já amaldiçoou minha vida o suficiente, deixem que sofra. - disse Henrique Neves, com uma voz trêmula e decidido.

Coloquem o Senhor Eduardo na carroça imediatamente. Félix, vá buscar Conrado, ele merece um enterro digno. - Disse Remo, com um tom de lamento.

Eduardo Neves foi posto ao lado de Conrado, coberto pelo seu manto marrom. A volta a Castelo Branco foi demorada. Henrique seguia atrás em seu cavalo, havia observado, impotente, a vida se esvair do pai. - Ele era muito forte, matou um urso cinza sozinho na minha idade, não tem como ser mais forte que isso. - era o que Henrique pensava ao ver o corpo de seu pai.

Finalmente chegaram ao castelo, seu pai parecia dormir. Remo Algido havia fechado seus olhos. Com um ar de tristeza, se ajoelhou em frente a Henrique. Todos os guardas presentes se ajoelharam em seguida.

Bem vindo de volta a Castelo Branco, Senhor Neves.