O caminho para Falsterdal

Havia algo de errado com a janela. Ou ao menos foi o que Elias pensou a princípio, antes de se aproximar e olhar para fora. Ninguém cobrira os vidros com uma película escura durante a noite, como ele suspeitara: lá fora ainda era, de fato, noite. E não uma noite qualquer: havia milhões de estrelas no céu, formando constelações que ele não se recordava de jamais ter visto; e abaixo delas, o jardim da frente desaparecera, sendo substituído por uma região árida e montanhosa cujos contornos recortavam-se contra o céu faiscante. Aturdido, Elias fechou as cortinas e olhou ao redor, para o interior da sala onde estava; decididamente, ali era dia. A luz da manhã entrava brilhante pelo vitrô lateral da porta da frente. Caminhou até ela e a abriu; tudo normal lá fora. O gramado verde, a cerca pintada de branco, as fileiras de casas suburbanas, todas iguais e enfileiradas lado a lado, automóveis esporádicos cruzando a rua em baixa velocidade naquele domingo de manhã. Saiu e parou em frente à janela da sala pelo lado de fora; como as cortinas estavam fechadas, não podia ver o interior da casa, o que era absolutamente normal. Voltou para dentro e gritou:

- Ivar!

O irmão caçula demorou alguns minutos para aparecer, ainda de pijama, uma caneca de café na mão e um ar de interrogação no rosto.

- Onde é o incêndio? - Perguntou pachorrentamente.

- Você foi dormir depois de mim ontem - Elias estava com cara de poucos amigos. - Notou alguma coisa estranha antes de se deitar?

Ivar colocou o punho livre fechado sobre a boca.

- Eu esqueci de trancar a porta da frente? - Indagou.

- Não. Estava trancada, acabei de sair agora.

- Bem... então, não.

Elias foi até a janela e abriu as cortinas antes de falar qualquer coisa. Com alívio, percebeu que a estranha noite estrelada continuava lá. Virou-se para Ivar.

- Já tinha visto algo assim antes?

Ivar arregalou os olhos. Depois, apontou para um ponto através de Elias.

- Elias...

Elias sentiu um calafrio na base da espinha. Era como se alguém estivesse com os olhos cravados em sua nuca. Virou-se lentamente e sim...

Havia alguém encarando-o do outro lado da janela.

* * *

Elias e Ivar estavam parados, cerca de metro e meio distantes da janela, estáticos. Do outro lado do vidro, tecnicamente no mesmo ponto onde Elias estivera a poucos minutos atrás tentando inutilmente olhar para dentro, havia uma mulher encarando-os. Ela era alta e pálida, com uma cabeleira longa e descolorida arranjada num penteado intrincado, e vestida de forma elegante, mas estranha. Tinha uma expressão serena e mãos juntas, como se estivesse fazendo uma súplica; ou seria algum tipo de saudação?

- Ela está viva? - Indagou Ivar.

- Acabou de piscar - replicou Elias.

- O que acha que devemos fazer?

- Certamente, não chamar a polícia. Talvez fosse melhor chamar os militares... podem estar mais preparados para lidar com esse tipo de situação - sussurrou Elias.

- O que será que ela quer? - Perguntou Ivar em voz baixa.

- Nos filmes, quando esse tipo de portal aparece, as criaturas do outro lado colocam um chamariz para atrair gente desatenta - avaliou Elias. - Se abrirmos a janela, aposto que aquela beldade vai abrir uma boca enorme, cheia de dentes afiados, e nos engolir.

A mulher abaixou as mãos, e quando as ergueu, segurava um pequeno cartaz. Nele, lia-se em letras de fôrma: "SE EU FOSSE VOCÊS, NÃO ENVOLVERIA OS MILITARES NISSO".

Elias e Ivar entreolharam-se.

- Ela está lendo os nossos pensamentos? - Ivar inquiriu.

- Aquele cartaz já estava pronto... - ponderou Elias, mão no queixo. - É como se ela soubesse o que íamos conversar...

A mulher abaixou o cartaz e em seguida ergueu outro, ou o mesmo com outra inscrição: "PODERIAM SE APRESSAR? NÃO TENHO A NOITE TODA."

- Vá buscar a espingarda - decidiu-se Elias. - Você me dá cobertura. Se ela fizer qualquer movimento suspeito, atire.

Enquanto Ivar ia cumprir a ordem recebida, Elias dirigiu-se à mulher do outro lado da janela:

- Quem é você? O que quer de nós?

O cartaz foi abaixado e subiu com uma nova frase: "EU SOU A IRMÃ MAIS VELHA DE VOCÊS, TULLIA".

- Nós temos uma irmã? - Indagou Ivar surpreso, voltando com a arma nas mãos.

- Não que eu saiba - replicou Elias cético.

* * *

Pouco a pouco, o quebra-cabeças foi sendo montado. Tullia era a primogênita de Emmelie; depois de haver fugido de um lugar chamado Falsterdal para a Terra, Emmelie se casara novamente e tivera Elias e Ivar. O portal onde Tullia aparecia agora permitia visualização bidirecional, mas o som era transmitido apenas no sentido Terra-Falsterdal, daí Tullia utilizar os pequenos cartazes que pareciam registrar pensamentos. Tullia queria que os meio-irmãos a ajudassem a entrar em contato com a mãe que desaparecera quando ela era criança.

- Já que sabe onde vivemos, porque não vem pessoalmente falar com ela? - Questionou Elias.

"EU NÃO DISPONHO DA TECNOLOGIA QUE ELA USOU PARA SE DESLOCAR", admitiu Tullia.

E então, para Elias ficou claro que a meia-irmã desejava muito mais do que apenas um reencontro com a mãe que há muito não via. Mas isso, só Emmelie poderia julgar.

- Eu vou falar com nossa mãe - comprometeu-se. - Quando você poderá fazer contato?

Levaria cerca de trinta dias, pelo que Tullia informou; a comunicação só era viável na lua cheia da Terra.

"POR FAVOR, INSISTA COM ELA", solicitou Tullia em sua última mensagem. "É NOSSA ÚLTIMA ESPERANÇA".

Isso só fez aumentar as suspeitas de Elias.

- [05-09-2020]