O congênito

- Naënno atannè úda! - Exclamou Romar de Noranto, batendo com o punho direito fechado no lado esquerdo do peito, ao ser admitido no escritório de Kamano, o mordomo da rainha. Kamano o encarou com surpresa, antes de se erguer e repetir o gesto, com menos ênfase:

- Úda atannè naënno! - Replicou. - Como então, você é dos trinitários de Noranto?

- Meus pais fugiram de Gheldor justamente por conta da perseguição dos heptarcas aos trinitários - declarou o rapaz com orgulho. - Felizmente, aqui na Caríngia estamos livres para professar a nossa fé e viver em paz.

- Graças à Mèlunne, temos tido governantes esclarecidos - respondeu diplomaticamente o mordomo, entrelaçando os dedos sobre a mesa. - Mas me diga, rapaz: como seu pai conseguiu registrá-lo como aprendiz na guilda dos armeiros da Caríngia? Sempre imaginei que apenas caringianos natos fossem admitidos, e não me diga nada sobre serem irmãos de religião; não estamos em Noranto.

Romar ficou sério.

- Tem razão, senhor; a regra existe, mas o conselho da guilda abriu uma exceção no meu caso.

E baixando o tom da voz:

- Eu fui concebido sobre uma pedra de raio.

Kamano inclinou-se sobre a mesa, olhos fixos no rapaz.

- Seus pais eram loucos?

Romar olhou para ele confuso.

- Não mais do que a maioria dos jovens na idade deles, imagino.

- Começo a entender porque tiveram que fugir de Noranto. Que idade você tinha, quando chegaram à Caríngia?

- Dois anos, senhor.

- Muito bem. Então, quando completou oito anos, seu pai decidiu que você seria um armeiro, como ele o era, imagino.

- Precisamente, senhor. E a guilda inicialmente não me queria aceitar, mas meu pai falou sobre a pedra de raio e eles resolveram fazer testes... comprovaram então que era verdade.

Kamano balançou lentamente a cabeça, em concordância.

- Eu li a sua carta de apresentação, preparada pela guilda; estávamos esperando por alguém assim a bastante tempo. Seu antecessor era um bom mestre de armas, mas o mana foi diminuindo com a idade e ele decidiu se aposentar. A rainha tem planos... você nos será muito útil.

- Espero poder ser - redarguiu Romar modestamente. - E a dedicada, Ulanir?

- Ela é esforçada, mas está longe de ser uma congênita - replicou Kamano. - Caso não queira os serviços dela, me avise que providenciarei uma nova assistente.

- Não, na verdade me pareceu bem esperta - apressou-se a dizer o rapaz. - Creio que faremos uma boa dupla.

- Ótimo! - Exclamou Kamano, erguendo-se e contornando a mesa para ficar diante de Romar. - Ordenei ao cavalariço que lhe trouxe, que levasse seus pertences para um quarto na torre sul; é ali que você irá residir enquanto estiver em Dastamar. Você encontrará roupas novas e deverá se preparar para cear comigo e a rainha, quando o sino tocar a segunda vigília.

E diante da expressão de dúvida do rapaz, deu-lhe uma palmada no ombro:

- Um pajem irá lhe buscar um pouco antes de soar a vigília. Mexa-se!

[Continua]

- [27-10-2020]