HÉLIO GASPARINI (parte 1)

Sentado em seu leito, Hélio olha perdidamente para o seu reflexo projetado no espelho dependurado sob a parede. Aquela figura esquálida, de meia idade, calvo e de cabelos grisalhos parece distorcer-se levemente como se o seu reflexo aos poucos se esvaísse. Sinceramente não se perturbara mais com esta imagem, pois há alguns dias já percebera tamanha disparidade em seu reflexo. Provavelmente alguma falha no espelho provocara assustadora aberração, embora jamais ouvira alguém lhe relatar nada semelhante. Nem mesmo ele, sempre tão taciturno e pacato, acreditava ter nesse fenômeno algo de sobrenatural ou sobre-humano. Também pudera, tratar uma “simples” distorção de seu reflexo como algo extraordinário poderia significar que desvirtuados estavam seus sentidos, o que, de fato, não parecia corresponder com a verossimilhança dos fatos. Pelo contrário, sempre muito solícito, o discreto escriturário de um modesto escritório de advocacia já até pensara em adquirir um novo espelho para dar cabo a esse desagradável equívoco. Idéia que imediatamente teve que ser adiada não somente pelo simples fato de a lua já estar posicionada no ponto mais alto do céu, anunciando que já era passada a hora de seu descanso, mas principalmente pelo dispêndio que tal ato causaria ao seu modesto e suado ordenado.

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Uma fina e úmida névoa matinal de inverno encobre o ambiente, ofuscando levemente a paisagem. Embora a temperatura esteja amena e o sol ainda não tenha desbancado por completo no horizonte, o nosso Hélio retira de seu guarda-roupas seu velho paletó puído e cheirando a mofo. Um ato quase que frenético usar uma peça tão quente para um inverno com temperaturas relativamente elevadas e ausente do típico vento sul que costuma bater impiedoso, e com freqüência, na cidade de Florianópolis. Certa vez lera em um livro, perdido na imensidão turva de sua memória, que o vento é portador de importantes coisas. Não sabia ao certo o que isso significava, nem que proporções adquiria em sua vida tal afirmação, mas temia a possibilidade de não ter que conviver com as fortes rajadas, quase que diárias, de vento. Temeroso a qualquer meio de transporte marítimo, tinha a convicta certeza de que não sofreria do mal de Ulisses, 20 anos à deriva em alto-mar, mesmo porque nem à praia gostava de ir, embora residisse não muito distante de algumas. Esse seu curioso gosto pelos ventos alíseos — que, se não o traziam benefícios concretos, malefícios muito menos — poderia ser explicado talvez por essa dificuldade física que o ser-humano tem em se adaptar a novas experiências que fujam ao seu cotidiano fatídico.

De qualquer forma, o sol já despontara no horizonte. Como a semana é de férias, não se apressou em levantar-se da cama para ir trabalhar. Caso fosse dia de expediente, sua refeição matinal seria sorvida rapidamente, com nacos de pão sendo alternados com goles esparsos de café preto, seqüência que seria realizada quase que automaticamente por nosso protagonista. Nesse dia, não sabe bem o porquê, acordou pensando na sua imagem desfigurada no espelho, pensamento que repeliu de imediato. De fato, é de se estranhar tamanha atitude, na medida em que para Hélio Gasparini a sua imagem desfigurada, mesmo que vista de relance, pouco o incomodava. Sentiu um espasmo por perceber que a aterrorizante visão não o deixava em paz. O estado de letargia que se abateu sob Hélio foi breve porém intenso, e o fez indagar a respeito de todos esses constrangedores e perturbadores acontecimentos. Seria tudo isso verdade? Não estaria ele enganado, ou até mesmo iludido? Lembrara, nesse momento, que a primeira vez que percebera algo de diferente no seu reflexo foi numa tarde chuvosa, após beber praticamente uma garrafa inteira de vinho. Ademais, essa imagem não teria sido vista no espelho, e sim na beira da praia, enquanto caminhava após a estiagem da chuva. A sensação que teve, naquele momento, é que sua imagem borrava gradativamente até se tornar uma imperfeita mancha.

Não deu muita atenção ao ocorrido, mesmo porque sua visão, além de deturpada pelo efeito do álcool, ficou prejudicada pelo leve balancear das sinuosas ondas. Contudo, desse dia em diante todas as vezes em que se deparou com sua imagem no espelho teve essa mesma sensação, embora não tão claramente quanto naquela primeira vez na praia. Talvez por isso tenha se mantido, até nesse instante, relativamente despreocupado com esses fenômenos. Acontece que nessa manhã de julho, ensolarada e amena manhã de inverno, Hélio despertara pensando em todas essas coisas. Por um instante sentiu medo de se deparar com seu próprio semblante. Não fazia sentido, sabia bem disso, todavia preferia evitar sua própria imagem a ter que se deparar consigo mesmo, seu maior medo. Mesmo ciente de que nada havia de errado consigo, e de que ninguém, nenhum colega de bar sequer, tivesse notado pequena diferença que fosse em seu semblante, algo lhe dizia, nesse momento, que sua fisionomia estivesse de fato desfigurada. Sensação que tentou aplacar de imediato, mas que inevitavelmente não conseguiu.

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