O acordar de um sonho

Aquela era uma cidade muito antiga e suas ruas estreitas, e desertas, estavam livres para ele percorre-las naquela madrugada de lua cheia. Suas pernas bambas o faziam caminhar sem destino, sempre pelo meio delas, pois era mais fácil de evitar um choque contra alguma parede de um velho casarão.

A cada dois ou três passos que dava, ele avançava e retrocedia para manter o equilíbrio e não se esborrachar no chão. Caminhava sem destino, saboreando o ar da madrugada, e seus pensamentos confusos não paravam de pular de uma melodia para outra, enquanto os seus lábios murmuravam melosamente, pedaços entrecortados de canções que conhecia, mas que não conseguia delas se lembrar.

Quando ele chegou na esquina da praça, que ficava em frente à igreja da matriz, sentou-se na beira da calçada e colocou com carinho no chão, ao seu lado, o violão que trazia nas costas. Balbuciou algumas palavras sem nexo e acabou deitando-se, em posição fetal, ao lado dele.

Assim que o dia amanheceu, novamente o encontrou ali ainda desmaiado, tamanho havia sido o porre que ele tinha tomado naquela noite. Abriu os olhos e demorou algum tempo para se lembrar quem era e o que estava fazendo ali deitado. Ao lembrar-se deu um sorriso gostoso, pegou o violão e se dirigiu para o barraco em que morava e quando chegou lá levou um susto.

Apesar da pobreza existente durante muito tempo nele, ele estava limpo e arrumado quando lá chegou. A mulata que era a sua companheira era muito asseada e gostava de cuidar da casa, mantendo tudo sempre limpinho e ajeitado. O feijão que ela fazia tinha um caldo grosso e era muito gostoso e o café cheirava lá na esquina quando ele vinha da boemia, só que ela não agüentou aquela vida que levava ao lado dele e tinha ido embora sem ele saber pra onde. Antes de ir ela fez tudo para que ele parasse de beber, só que ele não parou e ela não teve opção e acabou se indo.

Agora quando chegava da rua tinha de curtir sua ressaca no meio da bagunça que nunca arrumava, entre roupas jogadas pelos cantos, a pia da cozinha sempre cheia de louça suja com restos de comida e o chão sem ser varrido por vários dias, agüentando o mal cheiro que lá existia.

Ele nem ligava. Dormia o dia todo mesmo e depois tomava um gole de cachaça, assim que acordava no fim da tarde, e saia novamente para voltar quando fosse novamente de manhã cedo. Todo dia era a mesma coisa: cachaça, violão e horas perdidas na madrugada em uma vida sem objetivos ou direção.

Naquela manhã ele assim que chegou em frente ao barraco percebeu que a porta estava entre aberta e isso era normal, pois tinha mais uma vez quando saíra deixado de tranca-la. Assim que adentrou nele ele notou que tudo estava arrumado e colocado em seu lugar, que o chão tinha sido varrido e o ar cheirava limpeza.

Foi até a cozinha – o barraco tinha dois cômodos: o de entrada que tinha uma cama velha com uma das pernas quebradas e uma cômoda com as gavetas empenadas, onde ele guardava os seus trapos, dele se passando para uma cozinha pequena que só tinha uma janela e sem porta de saída - e lá ele encontrou também tudo muito limpo e arrumado. Será que a mulata tinha voltado?

Nessa hora ele abriu os olhos de verdade. Dessa vez não estava sonhando que acordava, mas tinha mesmo acordado e pela sutileza de um pombo que cagara bem em sua testa. Passou a mão por ela e arrancou dela aquela pasta fedorenta.

Sem limpar a mão ele a enfiou no bolso a procura de alguma moeda, se é que tinha, para tomar uma cachaça pra rebater e tirar aquele gosto amargo da boca. É lógico que ele nem ia até o barraco que com certeza estaria todo sujo e solitário.

Pra que? Passou a mão no violão, que naquela hora estava desafinado e com uma das cordas quebradas, e se dirigiu cambaleante para um boteco ali perto, afinal sua vida era perambular pelas ruas e os bares da vida eram onde ele encontrava a cachaça que era o seu verdadeiro grande amor.

CARLOS CUNHA o Poeta sem limites
Enviado por CARLOS CUNHA o Poeta sem limites em 20/03/2008
Código do texto: T909977
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