Exílio: o vôo cego - Parte 1

Aconteceu certa vez em Creta.Com seu par de asas tortas,Ícaro se desprendeu do alto do penhasco,arremessado pela invulnerabilidade incoerente dos jovens.Contra todas as impossibilidades,as grosseiras asas cederam às vontades do vento,e o garoto se viu dono do céu.Deliciando-se com a nova perspectiva de superioridade,decidiu tolamente alcançar o sol.Em sua viajem suicida,Ícaro apenas marcou encontro com a fria água do Egeu, presenteando-o com penas e cera.Gosto de pensar em Ícaro como uma síntese personificada da humanidade.

Nos primórdios da história também estivemos perdidos em nossos próprios labirintos.Pelos milhares de anos de evolução,dançamos nos embalos da tétrica melodia advinda do complexo dédalo formado na interação das mais variadas espécies e biomas,e,guiados pela seleção natural,conseguimos espantar os fantasmas da irracionalidade,tomando,assim,os volantes do mundo.Vestimos então nosso par de asas de penas de gaivota e voamos rumo à civilização.Mas tal qual fez Ícaro,a reles viagem não nos satisfez por completo.Ambicionávamos mais.Desta forma,não demorou para que,da mesma forma que o grego, vislumbrássemos a sedutora glória,não contentes com a imensidão do céu que já nos era posse.E voamos ignóbeis com as plumas pesadas rumo a um destino que não era nosso.E assim,despenados,afundamos no esquecimento do mar escuro e aguardamos na fúnebre Icaria,perdida por entre as águas,o dia em que voaremos de volta a velha Grécia.

Por muito tempo cobiçamos o astro rei,mas foi no século XXIII que nos jogamos na viagem sem volta.Com a explosão industrial e a depredação ambiental,não demorou para que os recursos naturais do planeta se tornassem escassos.Em pouco tempo a exploração de água potável e solo fértil passou a ser exclusivo de empresas estatais,refletindo em maior poder para aqueles que detivessem maior controle das potências hídricas.Obcecados por este novo mercado,governos e corporações arquitetaram caminhos que levaram à 3º Guerra Mundial.Vendo os avanços da biotecnologia como forma de reduzir baixas,as forças militares passaram a fazer uso das armas biológicas.Assim,ataques microbiológicos começaram a eclodir por todo o globo,dizimando milhares.No zênite do conflito biológico,o governo norte-americano criou o quimérico HIV-E,um vírus alterado tomado como base a estrutura do HIV comum,disseminando-se violentamente por contato entre indivíduos e com uma afinidade genética por grupos étnicos específicos.Nações sucumbiram subjugadas pela força da nova arma,pois a imunossupressão gerada pela doença potencializava as infecções decorrentes dos outros microorganismos já circulantes pelo globo.O governo americano logo expandiu seu território para parte da Ásia e América do Sul.O não esperado era que,voltando das áreas conquistadas,parte dos soldados trouxessem consigo para o solo americano uma nova cepa do HIV-E,agora capaz de infectar a população outrora imune.Como sempre,a humanidade havia menosprezado as forças evolutivas que movem a natureza,e o preço a ser pago foi caro.A pandemia matou um quarto da população mundial,e apenas teve fim anos após com a invenção de uma vacina.

Paralelamente,enquanto já pressupunham o desastre das armas biológicas,os japoneses desenvolveram um estudo a cerca da nanotecnologia,e criaram engenhosos nano-robôs que possuíam a exatidão impertinente aos organismos vivos.O seu princípio de ação era relativamente simples e efetivo:ao penetrar nas células de seu hospedeiro,as estruturas se fixavam às mitocôndrias,inibindo assim a respiração celular,levando o indivíduo a morte.Ao contrário do uso de bactérias e vírus,esta arma apresentava a vantagem de ser mais manipulável,controlada por ondas eletromagnéticas.Porém,mais uma vez,a humanidade virou os olhos para o caos que rege o universo.Uma pequena configuração das nano-partículas logo se mostrou instável,e os pequenos robôs fugiram ao controle de todos.Ao contrário de um microorganismo,não havia a possibilidade da criação de alguma vacina ou medicamento para este mal.Em poucos meses o mundo estava mergulhado em calamidade.Governos caíram,e a anarquia população se perdia em guerras internas. Não restando outra saída, iniciou-se o projeto Êxodo.Nele, a população sobrevivente foi reunida e lançada ao mar em grandes arcas,valendo-se da curta locomoção dos robôs fora de um hospedeiro.Isto foi a 300 anos.Desde então,vagamos pelo mar e sonhamos com o dia em que voltaremos a terra.

Me chamo Ivan Solus, morador da Arca Marina 5, biólogo chefe do grupo de expedições Guará Beta. Busco na terra sinais de mudança que possibilitem nosso retorno. É assim que seco minhas asas. É assim que alço meu vôo.