Sobre escambo e rebanho

— Boa noite. Hoje, uma atmosfera de espanto tomou o planeta. Qual seria o motivo da interferência aos sinais televisivos ao redor globo? O estranho fenômeno levou a uma onda de suposições, vacilando entre o ceticismo, o misticismo e a ufologia. E é justamente sobre uma destas hipóteses que nosso correspondente irá tratar agora. Boa noite, Thiago Guerra.

— Boa noite, Miguel Obregon. Estou aqui com o Dr. Henrique Matos, PhD em astronomia e astrofísica pela Cornell University e atual diretor do Grupo de Estudo Ufológico Brasileiro. Doutor, o senhor defende abertamente a idéia de a origem do sinal ser não-humana. O que o leva a manter-se firme nesta teoria?

— Veja bem, não estou sendo aleatório ou imprudente em minha afirmação. A figura transmitida pela interferência de hoje remete a um antigo mosaico criado em uma experiência na década de 70. Na ocasião, o SETI, um projeto mantido pelos antigos Estados Unidos, buscava sinal de vida inteligente extraterrena por meio de interceptações e análises de sinais de rádio. Tentaram, então, mostrar a outras possíveis civilizações que a Terra suportava vida. Assim, o Radiotelescópio de Arecibo foi usado para enviar uma mensagem para o cosmos, codificada em um código binário. Nela, dados sobre nossa constituição biológica e localização no sistema solar foram expostos. Da mesma forma, uma representação gráfica de um humano foi inserida no fim da mensagem. Como resultado, tivemos algo semelhante à imagem da interferência de hoje.

— Então a figura que vimos corresponde a um retalho de informações? O senhor mencionou-a como semelhante à gravura original, não como igual. O que as afastam?

— Exato, compartilham o mesmo código, mas não a mesma mensagem. Analisando ambas, podemos observar a presença de outro sistema solar e um DNA drasticamente diferente do nosso. Além do que, a última imagem, com certeza, não se assemelha à anatomia humana.

— E o que o senhor acha sobre a hipótese de que este trabalho seja uma versão refinada da encenação feita por Orson Welles, em seu ataque marciano de 1938?

— Pensar em alguém hackeando milhares de emissoras de TV e conseguir fazer uma transmissão em escala global me parece, neste ponto, muito mais fantasioso do que crer em alienígenas.

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— Boa tarde. Sabemos que certos acontecimentos infligem marcas tão profundas na história que acabam por darem-se como marcos. Este é um deles. Há cinco anos, uma interferência comprometeu todos os aparelhos de televisão do mundo. O fenômeno manteve-se inexplicável até então. No entanto, hoje, inúmeras naves gigantescas surgiram sobre as capitais dos Macro-setores globais. Pequim, Londres, Paris, Washington, todas as cidades sedes governamentais ficaram a sombra desses colossos. Estamos à frente do que se imagina ser o primeiro contato com vida inteligente extraterrena. A força militar se mantém defensiva a espera de respostas.

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— Boa noite. Finalmente, após oito dias de espera, fomos informados sobre uma reunião realizada entre os alienígenas e os membros do Parlamento Mundial. O encontro foi realizado por meio de transmissão holográfica entre os líderes, algo justificado pelo fato dos alienígenas ainda estarem analisando os possíveis impactos de nosso ambiente sobre sua espécie. O primeiro ministro informou-nos sobre os fins pacíficos dos visitantes. A raça, autodenominada Ur, é originária de um agrupamento de planetas na região central de Messier 13, e foi enquanto exploravam os arredores de nossa porção da galáxia que uma de suas naves captou os sinais da transmissão de 1974, como supunham alguns especialistas. Os seres mostraram-se interessados na criação de uma aliança comercial com os humanos. As bases do tratado firmam a Terra como fornecedora de matéria prima às fábricas messierianas, enquanto os urianos nos auxiliarão no desenvolvimento tecnológico. Este é, senhores, o início de novos tempos.

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— Boa noite para você aí de casa que nos acompanha em mais um De cara com Josué. Hoje falaremos com o Dr. Henrique Teixeira, biólogo e professor de Fisiologia Animal na UFPR. Boa noite, Dr. Henrique.

— Boa noite.

— Creio que, com as devidas limitações, ninguém melhor que o senhor para nos esclarecer em parte a situação. Há sete meses suas naves são vistas em no céu, mas só agora os primeiros urianos aterrissaram e caminharam pela Terra. Já havíamos conferido imagens da espécie em fotos oficiais, mas vê-los ao vivo com certeza foi impactante. O que são esses alienígenas?

— Bem, Josué, defini-los a partir de comparações com algo de nosso planeta é, de fato, inviável. Essa espécie passou por todo um processo evolutivo que em nada, provavelmente, se assemelha ao nosso. Uma das poucas particularidades que parecemos dividir é a necessidade de oxigênio e água em níveis semelhantes, o que foi uma espantosa descoberta. Nossa atmosfera também não ofereceu nenhum risco aos seus sistemas, ao contrário do que imaginado de início. Acredito que possuam sistemas imunológicos muito refinados, já que nem os microorganismos em nosso ar lhes causaram algum dano. . Em relação à alimentação, ainda não há nenhuma afirmação concreta. O que se diz é que por enquanto se alimentam apenas de mantimentos que trazem nas naves.

— E o que o senhor acha da comparação com os besouros?

— Ah, sim. Essa relação até que se mostrou, a sua maneira, oportuna. Veja bem, o que motivou a adoção desta denominação foram dois itens que os assemelham a estes artrópodes. Primeiro, o dorso abaulado e espesso. Segundo, o exoesqueleto. Contudo, vale lembrar que, diferente dos insetos, essa estrutura não é constituída de quitina. Não seria possível uma carcaça feita desta proteína suportar um ser vivo de grande porte como eles, que são em média pouco menores do que nós.

— E alguma idéia de qual seria esse material, doutor?

— Infelizmente, não poderei responder-lhe essa pergunta. Não dispomos de material para análise, e não seria diplomático, tampouco elegante, solicitá-lo. No que diz a eles, ainda teremos que nos contentar com muitas suposições.

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— Após a adoção do Bloco Econômico Inter-Planetário, a humanidade engrenou em uma escalada evolutiva nunca imaginada. Novos conhecimentos científicos e filosóficos correm pela população. Segundo Senso, indivíduos que se declaravam religiosos reduziram pela metade. Possivelmente, um reflexo do Raciocínio Científico pregado pelos Ur.

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— O planeta emergiu no caos. Após dois anos de relação amistosa, os alienígenas investiram contra o Parlamento Mundial e os Centros Administrativos dos Macro-setores. A defesa militar mostrou-se insignificante frente à potência bélica dos invasores. Deus nos ajude.

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— É com grande pesar que anunciamos a última transmissão do nosso jornal, bem como o fim desta emissora. Após uma semana de resistência, a humanidade já não tem forças para suportar mais ataques. O tratado de rendição foi assinado há poucas horas pelo primeiro ministro. Recebemos uma nota informando sobre o fechamento de todas as emissoras de TV, rádio, provedores de internet ou qualquer outro órgão da mídia. Aqui se despede Rodrigo Borges, em nome da Rede Multi. Foi um prazer estar com vocês. Boa sorte a todos nós.

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— Bom dia. Esta é a transmissão inaugural da Remipro, a Rede Estatal de Mídia e Propaganda. A emissora foi criada visando ser a ponte para uma boa relação entre os humanos e urianos. Pelo caráter delicado desta causa, e buscando evitar as polêmicas desencadeadas pela massa midiática, esta será a única organização licenciada pelo novo governo. Uma voz solitária é mais inteligível do que um coro em desacordo. Iremos, enfim, desmistificar as interpretações errôneas que correm as comunidades com relação aos visitantes. Suas intenções de nossos visitantes nunca foram ferir nosso povo ou orgulho, mas o ataque foi imprescindível para brecar-nos antes que atingíssemos a autodestruição, já que não nos mostramos competentes na administração dos recursos naturais do planeta. No entanto, os urianos não cobiçam a Terra. A intenção real dos alienígenas é devolver o globo aos seus donos, desde que estejamos devidamente aptos para uma exploração auto-sustentável. Para isto, um Centro Habitacional foi criado próximo às instalações messierianas. Algumas famílias sorteadas terão o privilégio de refinar seus conhecimentos e bases morais, para assim, reclamar a Terra. Sou Sara Giareta, e este é o Boletim da Hora.

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— Bom dia. Para a sua própria segurança, informamos que se instaurou o toque de recolher. Humanos encontrados nas ruas após as vinte e duas horas serão devidamente repreendidos e punidos. O porte de armas também está proibido. Tendo sido a polícia dissolvida, a patrulha será realizada por viaturas urianas. Sou Sara Giareta, e este é o Boletim da Hora.

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— Boa noite a todos. É com pesar que contrariamos nossa colega jornalista Sara Giareta. De fato, o sindicato odeia quando isto ocorre, mas precisaremos adiantar-lhes uma errata. Eles já não são a única forma de mídia do planeta. Bem, ao menos extra-oficialmente dizendo. Fazer o quê, a humanidade sempre teve essa queda pela subversão. Ao inferno os monopólios! Como não encontramos patrocinadores ou vendemos a alma para besouros gigantes, não dispomos do equipamento para uma transmissão televisiva. Sem bem que o uso do rádio tem lá o seu charme, certo Adão?

— Concordo, Lilith.Além do mais, acredito que o orgulho desses ETs não permite que se apeguem a uma transmissão de rádio. E mesmo que se importem, teriam um belo trabalho para nos rastrear.

— Realmente, os moduladores de voz que usamos são pouco perto do que eles precisariam driblar para nos encontrar. Então, amigos, podem ir tirando a poeira de seus Tradutores Multilíngues, pois transmitiremos diariamente para todos os Macro-setores, logo após o toque de recolher. Aos poucos que ouviram essa primeira transmissão, avisem seus amigos, seus parente, seus vizinhos. Somos a voz, mas precisamos de ouvidos. Que venha o Éden!

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— Boa tarde. Hoje foi divulgada a primeira lista das famílias sorteadas para habitarem o Centro Habitacional. Parabenizamos os afortunados. Aqui é Sara Giareta, direto do Boletim da Hora.

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— Pensávamos que sabíamos tudo sobre eles, mas sempre me pego surpreendida por sua imoralidade. Durante os seis dias de guerra, não é segredo que fomos massacrados. Mas agora, eles já não contam mais com o elemento surpresa. Ah, não. Ele agora é nosso! Os homens rastejam pela sarjeta, e esses besouros nem imaginam a hora do bote. E foi isto que ocorreu. Conseguimos ter acesso a um de seus corpos. Um de nossos integrantes abateu um dos oficiais urianos ao encontrá-lo espancando uma mulher pega após o toque de recolher. A primeira necropsia nos fez levantar hipóteses aterradoras. Céus... Continuaremos estudando o organismo e traremos mais informações assim que possível. Enquanto isso, peço-lhes, cuidado todos aqueles que forem selecionados para os Centros Habitacionais. Cuidado. Que venha o Éden.

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— Boa noite. Informamos que todos aqueles que participarem de movimentos de guerrilha ou protegerem algum de seus integrantes, serão capturados e levados a julgamento frente à Justiça Uriana. Punições cabíveis serão aplicadas. Sou Sara Giareta, e este é o Boletim da Hora.

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— Fomos muito inocentes ao tentar contato com vidas em outros planetas. Agimos feito índios erguendo fogueiras às caravelas... A dissecação do organismo foi concluída. Constatamos que se trata de uma forma parasita com alto grau de evolução. Durante o processo evolutivo, provavelmente, suas vísceras reduziram, até, a certo ponto, deixarem de existir. Desde então, ao que parece, precisam usar os órgãos internos de outros seres, ligando-os aos seus complexos sistemas.

— Falando assim a coisa toda parece mais simples, Lilith. Deixemos de eufemismo e saltemos para a ferida crua. Ao abrirmos o dorso abaulado, o casco do besouro, encontramos uma espécie de caixa toráxica. Em seu interior, jazia um tronco humano, sem cabeça, pernas ou braços. Partindo da base do crânio do parasita, as primeiras vértebras se abriam em leque para darem espaço a inúmeras fibras que se uniam a espinha cervical humana, mantendo os impulsos nervosos. Da mesma forma, inúmeros arpões se desprendiam da parede mucosa da caixa torácica alienígena para se fincar ao longo do tronco do homem. Por estes túbulos, ocorria a troca de fluidos entre os corpos. Mais acima, vasos principais se fixavam na altura do pescoço às carótidas e jugulares. Por fim, tubos de maior calibre prendem-se à traquéia e esôfago. Dessa forma, o alienígena utiliza todas as vísceras humanas. Agora consigo entender porque esses desgraçados se adaptaram tão rápido a nossa atmosfera. Contudo, notamos algumas mutações em alguns dos órgãos, como no fígado e nos rins. Não sabemos se isto ocorreu antes ou após a simbiose. Precisamos de mais estudos para confirmar.

— Antes esses desgraçados conseguissem sugar um pouco de humanidade... Para eles, somos umas porras de baterias! Esperamos um a um a hora de chegar ao lixo... Não temos mais o que falar por hoje.

— Lilith?

— Estou bem, Adão. Estou bem... Que venha o Éden.

[...]

— Ataques da chamada Frente Humana estão cada vez mais frequentes, levando a morte inúmeros civis. O grupo busca espalhar o caos para retomar o poder, lançando mão de calúnias contra os urianos. Informações sobre seus membros ou base de transmissão serão recompensadas. Sou Valentina Melchior, e este é o Boletim da Hora.

[...]

— Peguem suas armas e preparem-se para a batalha! Já estamos infiltrados por todos os cantos deste planeta. Rastejamos por baixo de seus narizes e eles nem imaginam. Coragem. Somos sete bilhões, eles cerca de 200 mil. Vocês saberão a hora certa. O sinal será grande. Um grande boom... Que venha o Éden.

[...]

— Estávamos certos sobre os Centros Habitacionais. Membros infiltrados descobriram o funcionamento da estrutura. Lá, as famílias são confinadas em tanques de submersão, onde recebem um tratamento a base se íons radioativos e substratos morfogenéticos. Nesta sopa, acabam desenvolvendo mutações direcionadas a adequar o organismo humano às necessidades dos parasitas. A cada seis meses, um uriano deve ter seu hospedeiro substituído, devido à fadiga gerada pela ligação. Como medida de segurança,a substituição é feita apenas por metade da população alienígena a cada semestre.Para isto que serviram os dois primeiros anos de relação amistosa.Foi o tempo que precisaram para abandonar seus hospedeiros antigos e pesquisassem as mudanças que deixariam nossos corpos utilizáveis. As abduções foram muitas, mas estávamos tão fascinados que não percebemos. Quando todos já contavam com um hospedeiro humano, atacaram.

— Não entendo porque enfrentam todo esse trabalho ao invés de usarem a clonagem ou então órgãos sintéticos, já que são tão desenvolvidos.

— Adão, você acha que, tendo os humanos descoberto a possibilidade de transplantes de órgãos unicamente a partir de estruturas de porcos, teríamos expandido as pesquisas para essas áreas?

— Não, Lilith. Acredito que apenas usaríamos os porcos...

— Exato. E, para eles, não passamos de porcos. Melhor ficarmos por aqui. Que venha o Éden.

[...]

— Ocorreu um ataque da Frente Humana ao Centro Habitacional. Felizmente... a vigília uriana conseguiu impedir a tentativa de seqüestro dos moradores do conjunto, reduzindo os números da tragédia. Sou Valentina Melchior, e este é o Boletim da Hora.

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— Quinze irmãos mortos. Adão estava entre eles. Dr. Henrique Teixeira.Um homem que foi maior do que todos estes parasitas juntos. Descobrimos que eles não são um povo. Não são uma nação. Na verdade, não passam de uma corporação. Fomos dominados pela droga de um fast-food espacial! Não sei se terei forças para continuar. Logo agora que já víamos os portões do jardim...

[...]

— Bom dia. O melhor deles, na verdade. Corpos urianos estão caindo pelas ruas. Sim, eles foram inocentes, achando que não conseguiríamos. Certas barbáries, inconcebíveis na paz, são tingidas com outros tons pela guerra. Nunca houve uma tentativa de resgate às famílias dos Centros Habitacionais. As mutações que sofreram os tornaram incompatíveis com a vida de forma autônoma. Jamais poderiam sobreviver fora de um tanque, ou então de um parasita. Eles morreram por um bem maior, assim como Adão. Ele se sacrificou distraindo os aliens, enquanto um segundo grupo adicionava uma toxina aos tubos de alimentação do complexo, o que acabou contaminando os humanos confinados. Hoje, ao fazerem a troca de hospedeiro, os ETs não perceberam as falhas metabólicas que os organismos carregavam. Agora, morrem um a um, sem haver a possibilidade de tomarem um segundo organismo para parasitar. Humanos brutos não oferecem um meio adequado, e os refinados estão todos contaminados. Agora é a hora de revidarmos contra a metade restante. Se não mais fortes, somos mais numerosos. Não sendo , basta sobrevivermos por seis meses e teremos o paraíso. Sou Valentina Melchior, e este é o Boletim da Hora. Não... Aqui é Lilith, e este é o seu boom. Que venha o Éden!