O guardião

Na penumbra da casa, o par de olhos azuis estava fechado, somente a cauda peluda dançava, pendida do banco de madeira acompanhando as notas agudas que cortavam o silêncio. Nem mesmo o vento quis se pronunciar naquela noite.

Sob a lua minguante uma sombra se perdia entre os galhos de uma paineira vermelha de tronco largo, quase imóvel. O luar atravessava a abóbada de vidro, resvalando nas flores em botão e no linóleo escuro do chão.

A haste continuava a arranhar as cordas estéreis do violino, tirando uma melodia dolorida. Mesmo de olhos fechados os dedos sabiam até onde deslizar, sem erros. O corpo se mantinha rígido e a mente em um completo vácuo. Era tudo automático. Sabia ela que seria apenas enquanto a música durasse. Depois voltaria a doer, tudo estaria de volta: o vazio, o silêncio, a dor e a memória.

Um soluço cortou a melodia, levando os dedos a tremularem e as notas se perderem. Era o recomeço do silêncio.O instrumento foi repousado sobre o colo e recebeu as primeiras lágrimas.

O gato se deitou de lado, ainda sobre o banco de madeira, bem lá debaixo da árvore, seus olhos agora estavam abertos, mesmo não podendo ser notados.

Retorna seu destino, já bem conhecido. Longe de casa, sem um futuro. Envolvida nas sombras de um passado que não era seu. Um destino que lhe tirou tudo a liberdade, os amigos e o amor. Não haveria honra ao fim do seu ciclo, nem lembranças. Foi apontada de um crime ordenado por deus.

Tentou entender. Logo tentou prosseguir. Hoje apenas tenta sobreviver.

Aquela lua era como seu coração, um pequeno fragmento do que realmente é. Mas a lua tinha seu brilho, vindo de um amor-estrela. Reluzia feliz em sua órbita, mesmo incompleta. Aquela sombra chorosa, todavia, não tinha sua estrela e, portanto, não havia luz. Era só um fragmento flutuando sem lugar, sem motivo.

Cansada de sentir dor, repousou o corpo sobre a carcaça espinhosa da paineira – cultivada dentro de seu universo de paredes frias de rocha e concreto, uma árvore onde não existiria nenhuma. Naqueles poucos metros quadrados estavam suas últimas memórias e lembranças de casa e do que um dia havia sido.

O sono veio e embalou seu corpo. A brisa que entrava pelo alçapão de vidro secou suas lágrimas. Abraçada ao seu violino, a pequena filha de Zars, abandonada por seu deus, tem sonhos sem cores.

Ao amanhecer, vai acordar com um de seus sorrisos e esquecer o que foi esquecido. Então, o pequeno gato esbranquiçado, de nariz cor de mel, vai ronronar com um carinho e pedir comida, como se nada houvesse mudado. E os dois vão atravessar a película dos mundos, direto para o mundo real, deixando para trás a noite, a música e a velha porta de madeira com adornos de prata.

Viajante Ls
Enviado por Viajante Ls em 16/02/2014
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