CARTA DO FUTURO

Recebi por e-mail esta carta, só que a não consegui responder. Estranha e questionável que possa parecer, publico-a com medo de deixar perder no tempo a possibilidade de imaginarmos agora o futuro. Não alterei qualquer palavra nela contida. Está aí da forma como a mim chegou.

Caros amigos, vizinhos, no tempo meus anciãos, meus ancestrais. Mando-lhes acenos aqui da minha realidade, distante muitos milênios, contando-lhes um pouco o como vivemos no futuro.

Na verdade, ao que todos esperavam a destruição da vida no nosso mundo, vivemos e continuamos nos proliferando, só que hoje, pelo que nos é dado restituir da sua era, não somos muito parecidos com vocês. Fato é que daqui a uns dois ou três mil anos o sol será bastante cruel e pensarão todos que a humanidade será extinta rapidamente. Mas não. E não foram em si as ciências que salvaram os humanos, como se esperava, mas a humanidade própria, o espécime, persistiu. A lei orgânica da resistência, de algum modo, levou-nos a evoluir em companhia do clima e do novo modelo de sustentabilidade que se instauraria. Não sem qualquer custo, ressalte-se. Os olhos, primeiro, foram se perdendo, ou seja, nós humanos fomos perdendo a capacidade de visão, que vocês ainda têm. Contanto, que não terão mais, nem vocês, nem a grande maioria dos animais terrenos e dos ares. Muitos dos seres marinhos se perderão, aliás. Mas a humanidade, frágil espécie, ficará invisível, sintomaticamente, — e como é estranho pensar que a visão fosse um sentido de tão pouca importância!

Claro que a seus olhos ver é uma qualidade superlativa. Entretanto, como olham tão fixamente, deixam de enxergar coisas muito mais fundas, que dizem respeito a outro estado da matéria, no qual o ser habita enraizado. Portanto, não é que não vemos, nossas imagens habitam nossa mente, no entanto seriam provavelmente incompreensíveis para vocês. São, talvez, o que há de mais próximo à música, para seu tempo... e à música, também não a possuímos como ouvem-na ali... Acho que esqueci de dizer-lhes que também não temos orelhas, não como as suas. São alvéolos nucleares que sugam a realidade à nossa volta, o tempo todo. Quando dormimos, o silêncio está no sonho, o qual redimensiona tudo ao nosso redor, transforma as sensações de música e de tempo.

Mas, se olhassem aqui o que me cerca, o que será que veriam? Faz-me curioso saber, sabem? Não tenho ideia do que poderia ser. E será que nos veriam, ao menos? Será que somos visíveis a olhos humanos?, já que estamos há muito acostumados a não nos ver como vocês nos poderiam ver; portanto, não fazemos ideia de como seríamos para seus olhos. Se poderíamos coexistir.

É verdade que como não conseguem nos compreender, mesmo que expliquemos a vocês nossa realidade, não conseguimos também nós saber precisamente como é a sua. Por muito há gente que quer ver sob a sua perspectiva a vida, da forma como olhavam, e há experiências formidáveis, e é assombroso pensar que ela (sua perspectiva) é muito mais limitada que a nossa. Embora constitua também a nossa; já que se foram os olhos, mas não os engenhos da mente, aglomerados a eles. Só que vocês olham para as coisas de maneira definida, olham para elas todas desenhadas em breves dimensões, concentram corpo e atenção apenas ao formato, geometricamente, é o que dizem. E essas barreiras dimensionais, intransponíveis pela sua cegueira sensitiva, os levam a ser quadrados, extremamente fixos, concêntricos nas aparências. É complicado imaginar, por exemplo, que vocês, quando fecham os olhos, não saibam se locomover, se confundam com onde andam. Poxa, vocês olham pra tudo, como se tivesse de ser tudo visto, e vão criando barreiras que realmente não se podem jamais sobrepassar.

Nós, quando perdemos a visão, desenvolvemos primeiro o ouvir, que logo com o passar do tempo tornou-se mais táctil que audível, e nossos sentidos todos foram se unificando.

“Correspondências”. Há registros de um belo poema com este título, que restou da Velha Pane, em distantes arquivos fônicos da rede, de verso diverso do nosso, mas que ainda em nós soa como sonho, como aurora musical. Assim, mais ou menos, nos parecemos. Como se as cordas estivessem ainda mais conectadas entre nosso espécime e a nossa natureza; como se fôssemos mais nós, universalmente, quanticamente. Não direi com isso que a maldade acabou; que se resolveram os grandes dilemas; que se desfez a sede de poder de alguns; que desinventamos o comércio mais fútil; não. Posso dizer apenas que se desfez o consumismo drogado, viciante e destrutivo: algo com a visão levou consigo um tanto da vaidade nossa, do delírio entorno das aparências. Não deixamos, por exemplo, de contar histórias, mas alguns detalhes sobre elas já não importam, já não teria sentido importarem.

Não nos vemos com olhos, mas já podemos nos enxergar vindo longes de outras maneiras que não a sua. Quando cheiramos, a imagem olfativa invade-nos com maior vantagem e somos transportados diretamente para a coisa em si. Mas se fumamos, nosso olfato é menor, tal qual o seu, pois não superamos nem aqui a necessidade de nos drogar e de sentir prazer, excessivamente, talvez mais que no seu tempo, em tantos preceitos morais aterrado.

Sua moralidade, acabou diluída pelo tempo. A nudez, por exemplo, a nós não nos causa constrangimentos, vergonha... rubor, como diriam. Nosso rubor tem mais a ver com sensação térmica, e não se chama assim. Como percebem, resta-nos a sensação, e vemos com nossas antenas sensitivas. Porém, como não vemos em formas geométricas definidas visualmente, não nos vestimos também. São raros os museus para que toquemos os seus tecidos e sintamos como é envolvermo-nos com eles. Mas não haveria sentido usarmos uma textura apenas sobre nossa pele quando podemos nos envolver com todo o tecido do mundo, o tempo todo. Pois temos o áspero, mas temos, além do mais, o macio em imensas proporções. Conforme o frio, usamos texturas diversas, nossos luxos, conforme se os comercializa, naturalmente. Mas o vestir, o sentir é ato enérgico a nós, que nos despimos.

Rimo-nos muito de como conta-se que apertam seus botões. Botões, para nós, apenas os de ligar e desligar os aparelhos, só que vocês apertam os pescoços e se acham bonitos com isso (é o que dizem os pesquisadores, enfim, apontando a mesquinhez de algumas veleidades humanas. E como a vida sem o sufoco de amarras é, logicamente, a melhor vida, sem discordância. Afinal, parecer bonito para o outro superficialmente, geometricamente, isso é ainda mais insignificante que a nossa ânsia de nos aparecer com tolices, quando estamos em grupo. Enfim me parece mais saudável que a aparência do ser em si seja mais sensível que a física visual que tece o seu mundo.) [suprimir este trecho]

As coisas aqui vibram muito mais que se agrupam. Ganhamos todos a sensação essencial, chegando, em alguns momentos de encantamento e profundidade, a tocar as primeiras cordas da vibração existencial, sentindo a presença de nosso big bang, ansiando muitas vezes desesperadamente tocar a matéria escura e os outros universos que ainda nos intrigam, cujo o seu não é de nós o mais distante e de cuja realidade jamais haveremos de receber respostas.

Sim. Como receberão esta carta, jamais saberemos! A não ser que se registre e salve-se. Se crerão nela, se crerão que foi enviada do futuro, se crerão que venha de seres de outros mundos (o que não deixam de ser nossos universos paralelos, mundos outros), se a desprezarão, ou se realmente a receberão como nossa tecnologia deduz, em seu idioma e mediante o seu modelo de impressão e de rede, esta última sendo o caminho de comunicação a que tentamos chegar...

Prestem atenção, todavia, que o seu modelo de rede, como tudo, não é eterno e sofrerá alguns danos terminais, até que vá sendo restituído e perdido conforme os novos padrões, gradualmente e mais rápido que o imaginado. O empreendedorismo criativo avançará ferozmente sobre os renovados modelos mercantis, que emergirão da grande cegueira, substituindo o modo operativo anterior. No começo, conta-se até que se adotaram os métodos da audiodescrição, por exemplo, na ânsia de manter alguns veículos visuais milionários, como o seu atual aparelho de televisão, que a nós só de nome nos chegou e em seu caixote inútil, o qual nos museus, quando o tocamos ligado à sua maneira, nos transmite energias ruins, — pois a sua energia tem uma maneira de transmitir-se ruim, poluída, causando sentimentos e sensações atormentantes, mesmo quando não está a ruir. Terrível. É impossível a nós cogitar entreter-se com tamanho ruído e irritabilidade.

Mas isso tudo está agora superado. Mandamos acenos de uma bela evolução, que caminha cada vez mais à esperança. E quiçá esta carta os ajude a enxergar um pouco além o seu presente, para que, quem sabe, ao vir da cegueira física, possam estar mais aptos a evoluir, superando ainda as dificuldades que vivemos aqui, para que possamos criar, no paralelo da existência, uma dimensão outra, de unção mais plena no espírito da vida.

Cortezmente,

Seus irmãos do futuro