Cidadão 862

O policial parou a motocicleta à minha frente e desceu, sem pressa. Dirigiu-se à janela do meu lado do carro e inclinou-se. Desci o vidro imediatamente.

- Cidadão 862? - Disse, à guisa de saudação, viseira do capacete abaixada.

- Pois não, policial - respondi em tom solícito.

- Está com algum problema mecânico? Essa área da Cidade Inferior não é segura para estacionar por períodos prolongados.

- Está tudo bem, policial - assegurei. - Estou apenas aguardando uma dama que reside no prédio do outro lado da rua.

- Bem, eu vou dar a volta ao quarteirão. Se na volta ainda o encontrar parado aqui, terei que multá-lo. Para sua própria segurança - acrescentou calmamente.

- Grato pelo alerta, policial - retruquei.

- Tenha uma boa noite, 862.

- Igualmente.

O policial montou na motocicleta e ligou o motor. Quando dobrou a esquina, virei a chave na ignição. Não podia me arriscar a tomar uma multa, embora perder a corrida também não estivesse nos meus planos. Felizmente, a passageira apareceu pouco depois, saindo às pressas do prédio carregando uma caixa grande de papelão embrulhada em papel pardo. Aproximou-se pelo lado do carona, abriu a porta traseira e colocou o embrulho no banco de trás. Em seguida, sentou-se ao meu lado e afivelou o cinto de segurança. Era uma mulher dos seus trinta anos, cabelo castanho pelos ombros, vestido escuro. Magra, nem bonita, nem feia.

- Boa noite - cumprimentou-me. - Desculpe a demora, mas vi o policial aproximando-se quando eu ia sair do prédio...

- Tudo bem - repliquei. - Para onde?

- Para a Catedral.

Engatei uma primeira e segui pela rua deserta, fracamente iluminada por postes de luz amarelada.

* * *

Havia algum ofício religioso sendo celebrado naquela noite na Catedral, percebi quando nos aproximamos. Havia muita gente se dirigindo para lá pelas ruas vizinhas, a maioria a pé, alguns afortunados de bicicleta, e uns poucos privilegiados, como a minha passageira, num carro particular.

- Aqui está bom - avisou, quando entramos na praça em frente à construção em estilo gótico. Parei próximo à calçada, ela pagou o valor de tabela e desceu rapidamente com a caixa.

- Poderia voltar em meia hora para me buscar? - Indagou, voltando-se para trás.

- Meia hora? Se ficar parado aqui por tanto tempo, posso tomar uma multa...

- Então, não quer ficar e assistir à cerimônia? Há um estacionamento atrás da Catedral...

E, como eu parecesse indeciso, acrescentou:

- Eu pago o estacionamento.

- Tem alguma coisa para comer lá dentro? - Perguntei, apontando para a Catedral.

- Creio... que sim - respondeu ela, sem muita convicção.

Olhei para o céu escuro acima de nós. Bom, eu não pretendia mesmo fazer nenhuma outra corrida naquela noite...

- Entre - disse para ela, indicando o banco traseiro. - Me mostre o estacionamento.

* * *

A Catedral estava cheia, embora não repleta. Como não possuía bancos, as pessoas estavam de pé, em grupos. Um espaço de passagem havia sido deixado no caminho que conduzia da porta principal ao altar. Foi por ali que entramos, a passageira à minha frente e eu em seguida, carregando a caixa, que aliás, era leve.

- Tire o seu boné, - avisou-me ela quando subimos as escadarias - em sinal de respeito.

- Está bem - acedi, removendo da cabeça o boné de pano barato onde estava gravado em letras brancas o número "862" e o guardando num bolso das calças.

Não havia ninguém no altar, e, para minha surpresa, a passageira foi para trás do mesmo. Pediu-me que colocasse a caixa sobre uma mureta e começou a rasgar o embrulho, sob o olhar atento dos fiéis, muitos dos quais trabalhadores dos níveis subterrâneos, pelo tipo de macacão pardacento que vestiam, e suas famílias. Finalmente, ela removeu o conteúdo da caixa e o exibiu para a multidão: um vestido azul-claro, gola branca, amarfanhado e com manchas marrons.

- Irmãos! Irmãs! Depois de uma longa espera e muitas negativas, o Departamento de Polícia nos devolveu a roupa que ela usava na noite em que foi assassinada! Vejam essas manchas! São do seu sangue!

Um murmúrio de indignação percorreu os fiéis.

- O assassino, contudo, ainda está por aí, à solta! Sabemos que a polícia não irá prendê-lo porque ele trabalha para os Mestres da Cidade! O que acham que devemos fazer?

Um vozerio confuso espalhou-se pela multidão. Ela depositou o vestido sobre o altar e ergueu os braços.

- Eu voto para que ele seja revogado! Quem estiver a favor, queira levantar a mão!

Praticamente todos os presentes, inclusive as crianças, ergueram as mãos.

- Muito bem... - aprovou a oficiante. - O número do assassino é 117!

Encarou a multidão com uma expressão dura. Finalmente, abriu a boca para recitar a fórmula de revogação, entoada por todos, inclusive por mim, em uníssono:

- Nós te revogamos, agora e para sempre... 117!

Quando nossa bocas se fecharam, o Cidadão 117 havia sido declarado nulo por toda a comunidade presente. Oh, ele continuaria a existir, pelo menos fisicamente. Mas qualquer interação com ele estava suspensa, daquele momento em diante. À medida em que as rádios-piratas divulgassem a notícia, a vida dele iria tornar-se um inferno.

Embora é claro, como todos soubessem, inferno mesmo fosse residir nos níveis subterrâneos.

- [10-02-2018]