Fora de jurisdição

A grande placa à beira da estrada não poderia ser mais incisiva. Em letras góticas brancas sobre um fundo vermelho, alertava, em inglês e alemão: "VOCÊ ESTÁ DEIXANDO O GRANDE REICH NAZISTA. PROSSIGA POR SUA CONTA E RISCO". O posto de fronteira ao lado dela era acanhado e contava com uma guarnição de segunda linha, composta inteiramente por soldados americanos; ninguém esperava um ataque vindo da Zona Neutra, desmilitarizada décadas antes, após a derrota dos Aliados na II Guerra Mundial, e a fronteira dos Estados Japoneses do Pacífico ficava centenas de quilômetros à oeste, além das Montanhas Rochosas. Como o comércio com ou através da Zona Neutra não fosse exatamente prioritário, tanto para nazistas quanto japoneses, os caminhos que levavam até lá estavam em mau estado de conservação. Não por acaso, algumas dezenas de metros além da fronteira, numa curva da estrada já no lado da Zona Neutra, erguia-se uma oficina mecânica improvisada num barracão de madeira. O local também vendia combustível alemão, pneus japoneses, e até servia refeições e bebidas para clientes eventuais. Na fachada, havia sido pintado em letras vermelhas garrafais: "POSTO ÚLTIMO RECURSO".

Um velho Kübelwagen verde-escuro, capota de lona, aproximou-se da fronteira pelo lado alemão. Parou pouco antes da barreira física que bloqueava a passagem - um poste listrado de branco e vermelho, operado por um soldado dentro de uma guarita. O sentinela aproximou-se pelo lado do motorista, rifle ao ombro, enquanto outros soldados da guarnição observavam a cena sem grande curiosidade, de dentro do posto. À bordo do automóvel, dois homens brancos, beirando os 50 anos, aparentando ser pescadores - incluindo camisas camufladas e chapéus com iscas artificiais presas neles. O homem ao volante, cabelos precocemente grisalhos, sorriu para o soldado, um jovem de não mais de vinte anos, que manteve a expressão fechada.

- Documentos? - Inquiriu ao motorista.

- Você frequentou a Juventude Hitlerista, rapaz? - Retrucou o motorista, estendendo-lhe a documentação e mantendo o sorriso no rosto.

- Naturalmente, senhor... Frank O'Donnell?

- Eu mesmo. E ao meu lado, Isaac Carmichael.

- Isaac é um nome judeu? - Indagou o sentinela com suspeição.

- É um nome bíblico, sim - respondeu o interpelado, cabelos negros rareando no alto da cabeça, entradas acentuadas nas têmporas. E olhando para o nome bordado no bolso do uniforme do soldado:

- Quando nasci, não havia nenhuma restrição ao uso de nomes bíblicos, Scavo.

Scavo devolveu os papéis à O'Donnell.

- O que vão fazer na Zona Neutra?

- Camping, pescaria... descansar um pouco, em contato com a natureza...

E apontando para o Posto Último Recurso:

- Mas antes, vamos parar ali para reabastecer.

A expressão de Scavo tornou-se menos dura.

- Eu ia lhe recomendar isso, senhor. É o último local onde poderá encontrar combustível num raio de 30 km.

- Grato pela recomendação, soldado. Estaremos de volta em 48 h. Sieg Heil!

- Heil Hitler! - Respondeu entusiasticamente Scavo, erguendo o braço na saudação nazista.

O'Donnell e Carmichael, dentro do veículo, apenas tocaram nos chapéus em resposta. A barreira foi erguida e cruzaram a fronteira. Alguns metros depois, Carmichael olhou pelo retrovisor e resmungou entredentes:

- Nazistas de merda.

* * *

O'Donnell e Carmichael pararam em frente à oficina e entraram por uma porta lateral. Lá dentro, havia um balcão rústico de madeira atrás do qual havia uma estante com vários itens, que iam de garrafas de bebida de procedências variadas, enlatados, peças de ferragem e até mesmo brinquedos baratos japoneses, de matéria plástica. Junto ao balcão, um homem alto, cerca de 70 anos de idade, vestido com um macacão jeans e camisa xadrez, um amarfanhado boné azul de maquinista encobrindo os raros cabelos brancos que subsistiam em sua cabeça. A expressão que fez ao ver os dois visitantes entrar, foi de alívio. Eles pararam ao vê-lo e prestaram continência simultaneamente.

- Descansar, rapazes - disse o velho.

- General Lewis... aqui estamos - disse O'Donnell.

- É melhor não me chamarem de general... ainda estamos muito próximos da fronteira - alertou Lewis. - "Ben do Posto", é como me conhecem aqui.

- Como quiser, senhor... Ben - corrigiu-se O'Donnell.

O general indicou uma mesa circular de mogno a um canto, com três cadeiras ao redor.

- Vamos nos sentar.

Quando todos haviam tomado assento, Lewis voltou-se para O'Donnell.

- Qual é o seu relatório, capitão?

- O Grande Reich Nazista entrou na fase delicada que havíamos previsto há alguns anos... o da sucessão de Hitler. O real estado de saúde do Führer é uma incógnita, mas ele não é visto em cerimônias oficiais há alguns meses. Todavia, alguns pronunciamentos são transmitidos pelo rádio em datas-chave, e como ele se refere a acontecimentos recentes, podemos intuir que ainda está vivo... por ora.

- E quanto aos japoneses?

- Nossos espiões na Costa Oeste... quer dizer, nos Estados Japoneses do Pacífico... indicam que eles estão preocupados com a questão sucessória de Hitler e no que isso pode impactar em suas relações com os nazistas. Afinal, é sabido que existem correntes dentro do Reich que pregam o extermínio também dos amarelos.

- Nós mesmos o teríamos feito, se houvéssemos tido oportunidade - atalhou Lewis.

- Talvez tenha chegado a hora... os japoneses continuam militarmente inferiores aos alemães, mas numa guerra total, é possível que possam infligir danos suficientes ao inimigo para reabrir as frentes de combate na Europa. Enquanto eles lutam entre si, poderíamos começar o trabalho de reconquista do território dos antigos Estados Unidos, tal como havíamos planejado antes de nos rendermos aos nazistas.

Lewis ouviu seu subalterno em silêncio. Depois, virou-se para Carmichael.

- E o senhor, o que diz, Dr. Carmichael?

- Teremos uma única chance, senhor. Se falhar, voltamos à estaca zero.

Lewis tamborilou na mesa, concentrado em seus pensamentos. Finalmente, abriu as mãos, palmas para cima.

- Temos que passar ao Reich a certeza inequívoca de que foram vítimas de um ataque covarde dos seus aliados japoneses... da mesma forma como nós fomos pegos de surpresa por eles, décadas atrás. Milhões devem morrer. Se tudo correr como esperado, não será o último ato de força ministrado sob a jurisdição dos Estados Unidos da América, mas o início da nossa libertação...

As palmas das mãos foram viradas para baixo.

- A bomba de hidrogênio deve ser detonada em Nova Iorque, quando a cúpula do partido nazista ali estiver reunida.

E retirando o boné da cabeça e o levando ao peito:

- Deus salve a América!

- [19-02-2018]