"E eles estão entre nós"


‘E ELES ESTÃO ENTRE NÓS’

Miguel Carqueija


Rogério e eu aguardávamos nossas noivas no restaurante ao ar livre da Avenida Rio Branco. Fazia um tempo frio, esquisito, ameaçando próxima chuva; e os agasalhos predominavam.
Rogério levou à boca uma torrada e comentou:
— Você não crê, Jorge, que as explosões atômicas é que são responsáveis pelo desarranjo das estações? Hoje em dia, no verão, há clima de inverno...
— Você não pode ignorar a poluição – arrisquei.
— Oh, também.
Um homem alto, magro, com rosto fino, nariz adunco e cabelo aparado, puxou uma das duas cadeiras vagas.
— Dão-me licença de sentar aqui?
— À vontade – disse Rogério. — Estamos esperando nossas noivas, mas não se preocupe. Só passaram dez minutos da hora marcada.
O recém-chegado sentou-se, conservando uma curiosa expressão irônica. Apesar do tempo, estava de manga curta e sem guarda-chuva.
— Estou chegando de Belo Horizonte — começou. — Sabem, não conheço o Rio muito bem...
Rogério piscou para mim significativamente, e voltou-se para o outro.
— Claro que não, meu amigo. Aviso-lhe que não adianta disfarçar comigo.
— Que quer dizer? — o homem aparentava divertida surpresa.
— Simplesmente, que o senhor não é terrestre e sim marciano. Oh, não negue; seria inútil. Já identifiquei vários de seus patrícios antes.
Nosso interlocutor pareceu, por um momento, preocupado. Relanceou o olhar de mim para Rogério. Este apressou-se a acrescentar:
— Mas não se preocupe. Claro que guardaremos seu segredo.
O garçom aproximou-se e o marciano pediu sorvete de creme e água gelada. Começou a ventar furiosamente.
— Como me descobriu, senhor?
— Pela eletricidade. Tenho uma aptidão especial para essas coisas. E vocês possuem carga elétrica inteiramente diferente.
— É verdade. O senhor disse que já falou com outros?
— Já. Nas minhas andanças pelo mundo... América do Norte, Portugal, Itália, Bélgica, Uruguai... pelo Brasil também. Vocês gostam muito daqui, não é?
— Visitamos muitos lugares...
O garçom trouxe o sorvete, que nosso marciano pôs-se a ingerir com grande prazer.
— E qual o meio de propulsão de seus discos voadores?
Subitamente o alienígena assumiu um ar reservado, como se houvesse passado para a defensiva.
— Não gastamos combustível como vocês fazem, em flagrante desperdício dos recursos naturais. Usamos a própria natureza.
— Como?
— Vocês nunca observam as aves planando? Não fazem esforço: aproveitam-se das correntes de ar ascendente. Nós usamos as linhas de força, gravíticas e eletromagnéticas.
— E como poderíamos fazer isso também?
O marciano continuava na defensiva.
— Vocês terão de descobrir por seus próprios meios. Não podemos facilitar-lhes a tarefa. Em sua história recente os terrestres vêm utilizando muito mal a Ciência. Vocês estão estragando o planeta.
— E por que vocês não se mostram claramente e nos ensinam tudo isso? — indaguei.
— Se uma raça não pode se arranjar sozinha, melhor será que desapareça.
Percorreu-me um arrepio.
— Mas não se assuste — apressou-se o extraterrestre. — Usei apenas uma figura de linguagem.
Rogério levantou a gola da japona. Redemoinhos faziam voltear papéis e poeira.
— Faz muito frio em Marte?
— Bem mais do que aqui. Creia-me, senhor, já quase não agüento o calor desse mundo.
— Pois creia que aqui no Rio faz muito mais calor do que agora...
— Eu sei. Mas tenho um pequeno aparelho que me ajuda a regularizar a temperatura. Infelizmente, sua eficiência é limitada.
— E há muitos de vocês por aqui?
— Um certo número...
— Como um certo número, rapaz? Há verdadeiras revoadas de discos voadores, charutos, funis, halteres, bolas, colméias... você não lê os jornais?
A defensiva continuava.
— Não são só de Marte.
— Ah, compreendo. Vênus faz concorrência?
O marciano não respondeu.
— Bem, não se aflija. Afinal, que há de mal em saber um pouco mais sobre vocês? Não é, Jorge?
— Sim, de fato. Eu gostaria, por exemplo, de saber como são suas cidades.
— Nada como aqui. Não usamos essas megápolis horrorosas. Não sei como vocês não enlouquecem.
— Pode ficar tranquilo, porque a maioria enlouquece mesmo — ironizou Rogério. — E como são as suas cidades?
— Lineares.
Eu fiquei espantado.
— Lineares? Quer dizer, em forma de linha? Que coisa engraçada!
Ele encrespou-se.
— Como assim, senhor? Saiba que esta é a forma mais sábia! Aliás vocês já deviam ter desconfiado: há muito tempo descobriram nossas cidades.
— Nós fizemos isso? Mas como?
Rogério estalou os dedos.
— Já sei, chefe! Os canais de Marte! É isso que são suas cidades?
— Como você disse — respondeu o nosso marciano.
— Falou-se muito que os canais são vias de irrigação... creio que Lowell e Schiaparelli...
— Bem, eles também são vias de irrigação.
— Mas eu pensei — arrisquei — que uma das sondas americanas já houvesse desmentido a existência de canais... e que eles se decompõem em granulações nas fotos...
Ele fez um gesto de desprezo:
— O senhor acredita em tudo o que lê, em tudo o que a NASA revela?
Senti-me embaraçado.
— Bem, não.
— Pois saiba que eles estão perfeitamente a par da nossa existência.
— Isso é outra coisa que me intriga — ia dizendo Rogério. — Como é...
Nesse ponto, porém, avistamos nossas noivas que chegavam. Rogério emendou:
— Bem, meu caro amigo, creio que temos de encerrar por hoje. Só há quatro cadeiras; a menos que apanhemos mais uma...
— Nem pense nisso. Já estou mesmo de saída.
Cumprimentou rapidamente nossas noivas, pagou sua despesa no balcão e retirou-se.
— Quem é ele? — perguntou a noiva de Rogério. — Que tipo estranho!
— Oh, apenas um marciano — explicou Rogério.
— Tem certeza? — disse minha noiva. — A mim, parece muito mais um saturnino!


(Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1973)





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