GLIESE

GLIESE
Miguel Carqueija


O sol vermelho tingia a paisagem crepuscular de púrpura e projetava sinistras e pontiagudas sombras para além dos rochedos afiados que se multiplicavam na longa paisagem desértica. Um planeta de sombras, intermináveis sombras, pensava melancolicamente Arquibaldo Torres, ao lado da oclusa exterior da Simonette. Nada poderia ilustrar melhor a indescritível solidão de uma vida desgarrada em um mundo desconhecido, a mais de vinte anos-luz da Terra.
Archie Torres refletia obssessivamente no longo encadear de fatores que resultaram naquela triste situação de Robinson das estrelas. A aproximação daquele sistema repleto de planetas e particularmente daquele mundo de albedo baixíssimo e quase duas vezes maior que a Terra... mas de gravidade ainda suportável por conta da baixa densidade. De fato, uma densidade da ordem de 0,56 em relação à Terra, reduzia o fator gravidade. Archie sentia-se meio leve, apenas isso.
Entretanto, encontrava-se sozinho. Os companheiros de viagem não haviam resistido aos transtornos sistêmicos ocorridos quando da emersão do hiperespaço. Tinham emergido muito próximos da superfície do mundo e a inteligência artificial não pudera desiberná-los a tempo. Cinco companheiros mortos com a jugulação do sistema de renascimento ou despertar do estado hibernatório. Falha nos dutos dos insumos injetáveis. Archie tivera muita sorte porque o seu próprio óvulo recebera o tratamento a tempo, por ser contíguo ao Centro de Ressurreição.
Mas seria sorte não ter morrido? Estar condenado a passar o resto de sua vida solitário num planeta distante e desconhecido? Qual a chance de ser resgatado, se a própria I.A. da nave havia-se desregulado com o pouso que beirara uma queda desastrosa?
A possibilidade de safar-se por si próprio podia ser considerada nula. Restava aguardar um resgate improvável. O Cosmos era muito grande para a Humanidade, filosofou o astronauta. Buracos negros! A tradicional agulha no palheiro não se comparava com a tarefa de vasculhar um braço da galáxia à procura de uma nave desgarrada. Archie só podia rezar — ou então desesperar-se, ensandecer. O suicídio repugnava o seu espírito; mas quanto tempo poderia resistir a tal ideia que iria se insinuando sub-repticiamente? Archie, por fim, chorou longamente — algo que, como homem, não julgava ser possível antes de vivenciar aquela situação-limite.

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Nicole Arezzo brincava tristemente com areia, uma fina areia grená que recobria o solo naquela região. Ela procurava imaginar o que poderia realmente lhe ocorrer se surgisse uma fissura, por mínima que fosse, no uniforme pressurizado de “magiplast”. A atmosfera, por demais rarefeita, não podia sustentar o metabolismo do “homo sapiens” que, julgando-se embora o senhor do universo, só podia sobreviver ao ar livre em seu próprio orbe de origem.
Com uma risada irônica ela considerou o topo de sua nave sinistrada, onde pelas instruções existentes, na chegada a qualquer mundo novo deveria ser içado o lábaro das Nações Unidas. Nicole, porém, não tinha mais qualquer motivação para aquele ato; tal coisa já não fazia sentido.
“Sozinha no universo, que obrigações eu tenho ainda de natureza hierárquica?”
Olhando para o imenso céu ela pensou em que a única presença que restava era a de Deus, por sua onipresença. Os argumentos dos colegas ateus lhe pareciam agora tão frívolos! A presença do Ser Supremo, naquela desolação, era sensível e palpável; era o único fator que a resguardava da insânia.
A “Procelária” transportava oito astronautas; entretanto a morte arrebatara sete naquele desastre. Nicole não podia considerar aquilo como sorte. A única vez em que tivera sorte na vida, recordava a garota melancolicamente, havia sido em criança, na fazenda de sua avó, quando o guzerá a atacara. Ela conseguira se esquivar e o boi prendera os chifres num toceirão, dando tempo à menina para escapulir.
Já fizera o inventário do que sobrara. Realmente, o projetor hiperespacial encontrava-se intacto. Mas os dutos de combustível líquido haviam-se danificado e, sem eles, não seria possivel atingir a velocidade orbital indispensável, já que o salto para o hiperespaço não poderia ser feito do solo. Como conseguir o combustível num mundo deserto era um problema insolúvel, já que seria necessário elaborar oxigênio líquido ou qualquer outro ingrediente que demandava fábricas, usinas. O motor fotônico servia para atingir a velocidade de escape, mas não ergueria a nave.
“Preciso fazer algum trabalho”, pensou ela, “ou enlouquecerei em breve”.
Resolveu, porém, dar um passeio para se familiarizar com aquele mundo de silício e ferro e certificar-se de que não havia alguma ameaça nos arredores.

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“Gliese 581” é uma anã vermelha pertencente a um sistema triplo, na constelação de Libra, e situado a 20,5 anos-luz da Terra (mais ou menos 180 trilhões de quilômetros). O planeta Gliese 667 CF possui gases CO² e CH4 em sua atmosfera, e mostra sempre a mesma face ao sol; sua temperatura varia em média de 0 a 40 graus. Seu volume é 50% maior que o da Terra e sua gravidade equivalente a 2,15G. O planeta foid escoberto em 24 de abril de 2007 pela equipe da Dra. Stéphane Udry, do Observatório de Genebra (Suíça).

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Archie observou tristemente as gavetas onde jaziam os corpos de seus companheiros. A energia atômica garantia na verdade, por tempo indeterminado, o sistema de congelamento. O problema mais grave não era esse — em último caso poderia enterrar os cadáveres. Precisava, porém, garantir oxigênio, água e comida pela reciclagem. Uma reciclagem que ficaria cada vez pior com o passar do tempo.
Para distrair um pouco a sua angústia e não cair numa perigosa depressão (que já é um começo de suicídio) Archie resolveu passear um pouco naquele mundo, sob a luz do sol vermelho, luz mortiça e desagradável. Com sua bússola adaptada eletronicamente para aquele planeta, podia contar que não se perderia facilmente.
Enquanto caminhava pela paisagem desolada e deserta, Archie não pôde deixar de refletir que tivera sorte... pela metade. O sistema de canalização do hidrogênio líquido, as turbinas, os vetores, tudo se encontrava intacto. Entretanto não podia por em ação o sistema hiperespaço; aí estavam os principais danos, fora é claro o enguiço do sistema de ressurreição. Sem os companheiros e sendo astronavegador, faltava-lhe a aptidão necessária para realizar sozinho a operação de regresso.
De fato, o salto para o hiperespaço dependia de operações eletrônicas que somente o cérebro da nave poderia efetuar; porém os danos sofridos não podiam ser consertados por Archie. Precisaria ser um analista de sistema e mesmo assim duvidava que conseguisse, pois muitos circuitos haviam simplesmente queimado.
Estava nessa melancólica reflexão quando, ao que parece, a canícula do planeta começou a perturbar as suas percepções. Naquela atmosfera avermelhada e em meio às formações rochosas de um solo estilhaçado, viu formas etéreas de fadas minúsculas, ou coisa que o valha, esvoaçando, simples formas luminosas cambiantes...
Parou um pouco e fechou os olhos. Abriu-os de novo, sacudiu a cabeça, piscou... as alucinações sumiram. Para sua surpresa, porém, uma miragem ainda subsistiu, porém a maior distância, por entre as pedras. Não flutuava, caminhava pelo chão e tinha aparência mais sólida e mais escura. Era também muito maior que as fadas-miragens.
Mas o que era quilo, pensou ele estupefato. Não poderiam existir habitantes humanos naquele planeta. Poderia uma ilusão de ótica ser tão persistente?
E no entanto a sua hesitação parecia se repetir na miragem, que por sua vez parecia tê-lo avistado e cessara subitamente o seu movimento.
A que distância estava? Um quilômetro ou mais? A diferença no horizonte confundia o cálculo visual. Ele se lembrou de recorrer à luneta.
Ao levá-la à face... descobriu, perplexo, que a “miragem” tivera a mesma ideia. Seria uma miragem-espelho?
Talvez fosse porque, quando ele resolveu ir ao seu encontro, ela fez o mesmo.

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— Teria mesmo que ser na sua, nesta Simonette — declarou entusiasmada Nicole. — Fico muito triste em deixar aqui a Procelária, mas não há como rebocá-la...
— Talvez um dia pssa ser resgatada, quando acharem que é economicamente viável...

Como na conquista do Pólo Sul, mais de uma expedição fora organizada. Se Robert Falcon Scott perdera a vida, a expedição de Roald Amundsen obtivera êxito. No caso de Gliese, porém, houvera diversas tentativas, patrocinadas pela iniciativa privada. Algumas estariam ainda no papel ou nos bancos de dados. Além disso, o fator relativista se manifestava naquelas viagens de longo proporcionais à velocidade próxima da luza que uma nave podia alcançar: Nicole partira dois meses após Archie e chegara ao planeta semanas antes. Não parecia ser uma grande anomalia temporal, mas se um dia o homem superasse a velocidade da luz o conceito do que era passado, presente e futuro, mudaria drasticamente.


Os equipamentos de Archie e de Nicole se completavam; em poucas semanas tinha sido possível transportar e adaptar o material da nave de Nicole para a de Arquibaldo. Até o computador da Procelária fôra transportado. Os cálculos estavam feitos e agora, com todos os cadáveres alocados na Simonette, estavam ambos prontos para retornar. Antes de cerrar a comporta deram um último olhar, de fora da nave, a Gliese.
— No fundo é um mundo fascinante — observou Nicole. — Espero que um dia tenhamos uma base permanente aqui, no planeta do crepúsculo vermelho.
— Para isso nossos companheiros deram suas vidas — observou Archie.
Passaram a eclusa e viram-se no interior da astronave. Ao retirarem seus trajes espaciais, Nicole acariciou a barba de Archie:
— Espero que você se reacostume a fazer a barba. Nunca gostei muito de homens barbados, e como vamos nos casar...
— Astronautas sempre têm muito o que fazer, mas prometo tirar a barba quando chegarmos em casa.
E beijaram-se entusiasticamente antes de darem início à manobra de decolagem.



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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 08/05/2018
Código do texto: T6330274
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