Um Dia O Mundo Iria Acabar

"News had just come over, we had five years left to cry in". - Five Years, David Bowie.

Isso, que você, caro leitor, está prestes a ler, não é uma história original, muito menos é de criação deste autor que lhe escreve. Não, nada do que estiver nestas páginas é inimaginável, pois há muito já está no imaginário popular de diversas gerações subsequentes.

A história nos ensina a prever o futuro, e o futuro sequer existe. Assim sendo, se no imaginário popular sempre existiu a ideia de um mundo insensível, não palpável aos olhos nus – ao despir-se da fé, da crença em algo além, vinda ela a sofrer um declínio no famigerado, e maravilhoso, século XIX - nada mais se podia esperar que o nascimento, e até mesmo renascimento, de outras crenças.

Era um dia ameno de outono. As luzes da sorveteria eram incandescentes neon, e já estavam ligadas antes mesmo do sol morrer de vez no horizonte. A lua minguante se encontrava do lado oposto e o ruído borbulhante de dez milk-shakes sendo sugados ao mesmo tempo era a trilha sonora para aquele crepúsculo.

Todos estavam concentrados em seus próprios canudos quando, na rua, as pessoas começaram, aos poucos, a olharem para cima, primeiro, e depois a se amontoarem juntas, ainda olhando para o céu amaro-alaranjado, elevando suas vozes de um burburinho inteligível para gritos de horror e excitação.

BUUUUM. Fora colossal o estrondo. Todos, eu inclusive, saíram para fora da sorveteria e de todos os outros estabelecimentos da rua. Havia mortos e feridos por todos os lados; os membros faltantes, que, como esperado, também estavam espalhados pelo asfalto sanguinolento.

Formou-se uma turba e as sirenes da polícia eram ouvidas ao longe. A paisagem uma vez cinza da cidade tornou-se rubra e as caras uma vez entediadas das pessoas demostraram pânico.

- Vejam, – gritou alguém – vejam o que está na cratera!

No meio de todo o caos um buraco, tão fundo e grande quanto a cova de um enorme ciclope, e igualmente mal cheiroso. A encanação dos esgotos havia-se rompido, todos os dejetos formavam uma piscina borbulhante, com sons parecidos aos dos milk-shakes sugados, e, em contato com todos aqueles dejetos, um cubo de cor escura avermelhada, enorme e imponente.

Uma balburdia ensurdecedora começou a tomar forma novamente entre o povo estarrecido, obrigando a polícia a usar sua força para afastar os cidadãos do buraco e, quando todos os policiais formaram um cordão humano entre as pessoas e a cratera, outro barulho assomou-se ao da rua. O som de um vazamento de gás, muito alto, e um click.

Todos se voltaram para onde parecia vir aquele barulho, o cubo rubro-negro desmontava-se em vário outros cubos perfeitos, deixando-nos ver, em seu centro, uma figura disforme. Olhamos boquiabertos e muitos voltaram a gritar, espalhando, mais uma vez, uma onda de terror incontrolada.

As pessoas começaram a se empurrar, muitos enfrentaram as forças policias e, dentro do buraco de pelo menos dez metros de profundidade, muita gente encontrou seu fim na queda quando empurradas na confusão.

E, quando todos olhavam para a cratera, lá embaixo, terrificados e curiosos, tão rápido quando um felino subindo nos galhos de uma árvore, um corpo magro, extremamente pálido e de cabelos vermelhos como o fogo ascendeu à superfície, em um pulo astronômico incapaz para qualquer ser humano.

Quando caiu em cima de um dos carros da polícia todos o olharam, petrificados, e aquele ser, numa pose de tigre pronto para atacar, começou a guinchar de forma demoníaca, seus dentes pontiagudos cerraram-se e seus olhos amarelos fitaram a plateia. Sua pele branca era escamosa, e agora começava a soltar-se, largamente, dele que, com suas unhas, arrancava o couro que cedia e esticava até deixar seu corpo, uma imagem abominável.

Pouco a pouco, tira a tira de couro dava lugar a uma pele humana, os olhos da criatura assumiram uma cor esverdeada e seus dentes, arrancados um a um, nasciam rapidamente, num sorriso britânico, mas também humano. Quando, finalmente, terminou o autoflagelo e sua monstruosa mutação, a criatura se levantou e olhou para as pessoas que continuavam a gritar, olhando para ele.

Para quem o observava direito, podia-se ver, ele chorava. Suas mãos tremiam, e rápidas lágrimas corriam seu rosto humanoide, que ainda carregava um semblante estranho, alienígena. Seu corpo, magro, branco, não era mais tão diferente do nosso, e seu choro desenfreado causava a mais estranha das empatias.

Ele abriu a boca, parecia querer falar algo, eu sentia, um calafrio correu a minha espinha e passou adiante pela multidão, que olhava atenta, sem saber se podia se mexer ou fazer outra coisa além de gritar imóvel. A criatura humanoide abriu a boca novamente, e desta vez soltou um grito tão ensurdecedor quando seus primeiros guinchos, parecia ter a intenção de fazer a plateia se calar, mas ninguém conseguia entender.

- CALEM A BOCA! – um homem gritou – CALEM A BOCA! Aquilo está tentando dizer alguma coisa.

Levou algum tempo para que um silêncio moderado finalmente se acomodasse naquele caos, e quando finalmente o fez, a criatura camaleônica, ainda chorando em desespero, gritou:

- CINCO ANOS! CINCO ANOS! O MUNDO IRÁ ACABAR!

Sua voz era humana, a linguagem, a nossa, assim como o seu desespero, real e aterrador. Mais uma vez todos gritavam e choravam, e aquela figura estranha, entre nós, deitou arrasado em cima do carro da polícia e chorou, junto, as nossas dores.

Assim, do choque, do pesar momentâneo, surgiu a revolta, a raiva, e a multidão dilacerou aquele ser com as próprias mãos, enquanto ele, chorando, parecia saber o seu destino e não aplicava resistência alguma aos murros e pontapés que acabaram por lhe esmagarem a cabeça no asfalto.

Hoje faz dez anos desde de tal acontecimento, mas o mundo ainda não acabou. Só os relâmpagos da memória continuam a me trazer a imagem daquele ser, indefeso, esmagado contra o chão, e seu sangue, que manchava o piche negro, era vermelho como o vinho. Vermelho como o nosso próprio sangue.

Hermes de Sá Lourenço
Enviado por Hermes de Sá Lourenço em 22/05/2018
Reeditado em 10/07/2018
Código do texto: T6343550
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