Tentações

[Continuação de "Lar é um lugar inesperado"]

- Os homens são como crianças... por mais que cresçam e envelheçam, continuarão a ser como crianças. E você não coloca armas letais nas mãos de crianças... pelo menos, não armas que você não possa tirar deles, se for necessário.

Lúcia Sampaio parou de falar e encarou a adolescente pálida sentada à sua frente, de vestido vermelho-escuro e cabelo castanho preso num rabo de cavalo por uma fita negra, à mesa da ampla sala de estar do apartamento que dividiam em Vila Nova. Entre as duas, vários livros abertos de Alta Magia, capas de couro gasto, páginas amareladas.

- Mas, respondendo objetivamente à sua pergunta: não há nenhuma limitação de ordem biológica ou intelectual que impeça homens de serem versados nos mesmos campos de conhecimento que nós, mulheres. Isso só não é mais feito, por uma questão de segurança.

A jovem aprumou-se na cadeira, expressão atenta.

- Segurança nossa? - Inquiriu em expectativa.

- Do Multiverso - foi a resposta categórica. - Estou sendo honesta com você: da forma como as coisas funcionam hoje, há uma garantia de paz. E é uma paz que já dura milhares de anos...

A jovem abriu a boca e a fechou, hesitante. Finalmente, formulou a sentença que parecia queimá-la por dentro:

- A minha mãe... a minha mãe dizia... que essa paz era artificial, e que iríamos nos arrepender de não prepararmos todos os recursos existentes caso uma ameaça externa surgisse.

O rosto de Lúcia Sampaio crispou-se.

- Como sua tutora legal, devo lembrá-la de que até mesmo a menção de questões que envolvam sua falecida mãe devem ser evitadas. As circunstâncias da morte dela ainda são motivo de comoção geral, e o Grande Conselho pode julgar que eu não estou lhe dando uma educação adequada... e nomear outra pessoa para a tarefa.

A reação da jovem a pegou de surpresa. Ela ergueu-se, um leve sorriso perpassando-lhe pelo rosto, contornou a mesa, e parando ao seu lado, abraçou-a, recostando a cabeça em seu ombro.

- Você é a melhor tutora que eu poderia ter, neste mundo ou em qualquer outro! - Declarou.

Beijou-a na face e acrescentou, em tom doce:

- Sei que não é minha mãe, mas eu a amo como se fosse!

A iniciativa de Lúcia Sampaio foi retribuir o abraço da pupila, sentindo subitamente um grande alívio invadir-lhe o peito. E respondeu, num sussurro emocionado:

- Eu também te amo, Noêmia.

* * *

A criada serviu o chá nas xícaras das duas conselheiras e perguntou se precisavam de mais alguma coisa.

- Grata, Jussara, se precisarmos eu toco a sineta - avisou Rita Campeche.

A criada retirou-se com uma vênia, deixando as duas mulheres sozinhas à mesa circular, na varanda do apartamento de Campeche. Entre elas, sobre uma toalha branca, um serviço de chá de prata e uma travessa com financiers, macarons e pequenos sanduíches triangulares.

- Ela acha que vamos mesmo comer tudo isso? - Indagou Lúcia Sampaio com ar brincalhão.

- Pelo menos prove um de cada - sugeriu Rita. - Foram feitos pelo consórcio de Jussara, meu cozinheiro pessoal. O rapaz é um mestre da confeitaria.

Lúcia pegou um dos macarons e deu uma mordida. Fez cara de aprovação.

- Deusas! Isso é muito bom mesmo... acho que vou pedir para levar alguns para a Noêmia...

- Claro que sim! - Assegurou Rita. - E, por falar nisso, como está ela?

Lúcia tomou um gole de chá antes de responder.

- Bem... ela está bem. Confesso que, no início, achei que não estava preparada para cuidar de uma criança. Mas agora, cinco anos depois, estou satisfeita com o desenvolvimento e o retorno emocional que Noêmia tem me dado.

- Eu estava certa disso - declarou Rita com satisfação. - Tanto que indiquei e defendi o seu nome para a tutoria de Noêmia Simões, perante o Grande Conselho.

- Sim, amiga, tenho plena consciência de que você empenhou-se pessoalmente para que meu nome fosse indicado...

Deu outra dentada no macaron, e após engolir e tomar mais um gole de chá, acrescentou:

- Embora eu nunca tenha entendido exatamente o porquê.

Rita Campeche concedeu-lhe um sorriso beatífico.

- Independentemente do motivo, não se sente realizada por ter sido escolhida?

Lúcia Sampaio acabou de beber o restante da xícara antes de confessar:

- Amo a Noêmia como se fosse minha filha.

O sorriso continuou a bailar nos lábios de Rita Campeche, enquanto ela pingava um pouco de leite em seu chá. Tomou um gole, antes de responder em tom seguro:

- E eu quase posso apostar... que ela retribui o seu amor da mesma forma.

[Continua em "Resolvemos isso em três gerações"]

- [03-07-2018]