A batalha permanente [conto]

Naquela altura já não existia mais guerra. A resistência humana tinha sido aniquilada pelas tropas mistas muito antes de alguma batalha começar. Não havia maneira racional de entender como praticamente toda a forma de vida não incorporada ao organograma de preservação universal sumiu e toda e qualquer construção se tornou uma pilha de escombros. Algumas almas ainda sobreviviam isoladas e se escondendo. O contato entre elas não era confiável. Encontrar alguém era um sinal de que o fim tinha chegado. Em alguns segundos ambos desapareceriam sem nem perceber como. Escritas deixadas em pedras e pedaços de madeira contavam que as vibrações geradas a partir da atividade cerebral de duas pessoas que tentam se comunicar provocavam um colapso dimensional que as transportavam para dimensões desconhecidas, sem caminho de volta. Não havia esperança de organização de resistência ou de recomeço. Aqueles que, por algum motivo não conhecido, ainda caminham pela terra apenas esperam o momento de descobrir o que existe do outro lado, seja lá qual lado for.

Júlia despertou um pouco antes de sol nascer com um susto e empunhando sua Glock. Olhou em volta e nada se mexia. Prendeu a respiração e aguçou seus ouvidos para se certificar que nem os passarinhos cantavam. A possibilidade de ser encontrada por qualquer coisa lhe assustava. Nada a esperaria depois. Seu último ato seria atirar antes de qualquer contato, mesmo que visual, o que tornava sua tarefa praticamente impossível. Ela não sabia responder como ou porque ainda estava viva, nem quando tinha nascido, nem onde ou como tudo aquilo tinha começado. Também não se lembrava de um dia ter visto alguma coisa viva. Era como se sempre tivesse sido assim. A última vez que tinha se deparado com vestígios de vida foi com um pequeno tolete de merda ao lado de um tronco seco no limite entre o deserto de terra seca e a floresta morta da terra arrasada, alguns meses atrás. Se os dejetos ainda estavam ali era porque o buraco por onde eles saíram sumiu antes que o cagador pudesse se apropriar dos seus restos como alimento. Júlia se apropriou dele e saiu dali antes que tivesse o mesmo destino.

Tentando fazer o mínimo de barulho Júlia se levantou, enrolou sua manta, colocou a mochila nas costas e saiu dos escombros. Estava sem ingerir nada há três dias e tinha água para não mais que dois. A permanente batalha para continuar existindo pedia por comida. Os escombros ali pareciam ser de uma cidade grande. Pedras de concreto e ferros retorcidos podiam ser observados até onde a vista alcançava. Neste cenário era relativamente comum se encontrar comida enlatada e antigas caixas d’água ainda preservando o precioso líquido. Ela andava tentando se expor o menos possível, próxima aos restos das construções ou se escondendo atrás das grandes montanhas de entulhos, buscando espaços onde ainda haviam teto e paredes. O medo de encontrar alguém sempre estava presente. Por isso quando Júlia percebeu uma porta fechada a sua frente rolou uma pedra para o vazio e esperou alguns instantes, com a Glock engatilhada e em posição de tiro, para ver se haveria reação, antes de se arriscar. Só quando se sentiu segura ela entrou.

A primeira coisa que Júlia observou era que o encanamento ainda estava de pé, o que considerava um sinal positivo. Andou pelos corredores como uma soldado que verifica se há algum risco do outro lado da porta. Numa delas encontrou um banheiro, onde conseguiu alguns goles de água no copo dentro de um chuveiro caído. A privada estava seca, mas dentro da caixa de descarga repousava, como que esperando ser achada por alguém desesperada, uma lata de sardinha fechada. Ela pegou o prêmio, colocou na mochila e continuou checando cada espaço. Após se certificar que não tinha mais tesouros escondidos mudou sua prioridade. Agora precisava de abrigo. Com o que tinha achado poderia permanecer em um local seguro por até uma semana.

De uma janela olhou para o céu e calculou que tinha mais umas duas horas antes de anoitecer. O tempo não era o bastante para se distanciar o suficiente daquela cidade em ruínas e buscar refúgio em alguma caverna isolada. Nos últimos dias a região tinha se mostrado segura e provedora do necessário para sobrevivência. Então, por um caminho diferente do que tinha feito, começou a voltar para o escombro onde tinha passado as últimas noites. A laje que sustentava os andares superiores da construção ainda se mantinha intacta, e estar um nível acima do solo proporcionava uma sensação de que as chances de uma surpresa desagradável eram menores. Júlia se aconchegou no seu canto do espaço e fez mais uma marca na parede. Era a quinta. Depois ajustou um pedaço grande de madeira apoiado de forma a criar uma cabana e se enfiou dentro dela com a sardinha enlatada e toda a fome do mundo. Preocupada em não desperdiçar nada ela transferiu todo o conteúdo para uma caixinha de metal que carregava consigo e lambeu a lata até sentir só o gosto do metal e o tato garantir que não havia restado nenhum traço de óleo. O banquete a linguadas seria seu jantar, o café-da-manhã prometia ser a festa da comida mastigável, e por fim teria uma boa noite de sono com a barriga cheia.

Enquanto tentava pegar no sono vendo os últimos raios de sol entrarem por um buraco na parede Júlia ouviu um barulho vindo diretamente debaixo de onde estava. Sua primeira reação foi empunhar a Glock e começar a tremer. Não era a primeira vez que a presença de outra coisa viva se anunciava por um som de alguma coisa caindo ou se mexendo, e nunca nada apareceu depois. Vento, tempo, podridão, um animal perambulando, muita coisa produz ruídos. Outro som, e era de alguma coisa se locomovendo. Um passo curto e arrastado. Era vida, e ela fazia o coração de Júlia bater tão forte que poderia sair voando do peito. Parecia cada vez mais perto, até parar. De dentro de seu esconderijo Júlia sentia aquela presença na frente de seu abrigo. Era só colocar a cabeça para fora e ver. Por alguns minutos ela apontou a Glock para frente apenas esperando alguma coisa entrar no seu campo de visão para atirar. Nada aconteceu, e ela ainda sentia que a presença observava sua saída.

Se revelando a partir dos braços esticados com a Glock em punho Júlia saltou para fora procurando por vida, mas não havia nada para onde seus sentidos apontavam de dentro de seu abrigo improvisado. Quando se virou se deparou com um pequeno ser, cabeçudo, baixinho, com os olhos de amêndoas. Ela não conseguiu disparar a Glock como tinha pensado que faria. Por alguns milésimo de segundo se concentrou em sentir como era encontrar outro ser vivo. Ela respirou profundamente para tentar distinguir o cheiro dele, buscou com os ouvidos o barulho de sua respiração, olhou fundo na sua carapaça imaginando sua textura. Alguma coisa dentro dela explodiu e tudo parecia que ia ficar bem. Júlia arregalou os olhos assustada e o ser e ela desapareceram.