VIDAS CRUZADAS
 

O talento educa-se na calma;
O caráter, no tumulto da vida.
(Goethe)
O movimento estava por demais evidente naquele início de noite na famosa Boate, Flor da Perestroika, local conhecido além da conta por diversos freqüentadores, que lá degustavam os segredos do prazer mundano. Os fregueses eram viajantes, visitantes locais, alguns casados, outros indefinidos, e também os solteiros; enfim, homens e mulheres em busca de um efêmero momento de intimidade sem cobranças, a não ser o cachê previamente negociado. Não eram poucas e nem raras, a presença de personalidades importantes da comunidade. Com receio de serem reconhecidos - visitando as meretrizes - utilizavam de artifícios até cômicos, pois esgueiravam-se por entre as sombras, quando ainda não estava avançado o crepúsculo do anoitecer, e da mesma forma pisavam miúdos, minutos antes de brilhar o alvorecer.
Eram no total doze mulheres, de várias idades, cores e histórias, que aportaram nessa nau para navegarem sem destino, sobre as ondas do infinito em orgias remuneradas.
Todas tinham desculpas para vida que levavam Umas alegavam que detestavam e somente enveredaram para a profissão mais antiga do mundo, porque justificavam terem sidas abandonadas por seus parceiros, seus familiares, ou porque foram seduzidas pelo ganho fácil, e por conta, é claro, dos prazeres renováveis.
Nessa noite, especialmente, ocorria algo incrivelmente anormal. Estava prestes a acontecer um parto em um dos cômodos da casa, onde presume-se infindas separações em razão das freqüentes escapadelas dos maridos, que não somente traíam seus cônjuges, mas não por raras vezes deixavam o salário do mês. Suas mulheres aprenderam a odiar as moradoras daquele antro, conforme definiam o local.
Nos mais de quinze anos, desde a sua inauguração, esse seria o primeiro nascimento em suas dependências.
O silêncio da noite fora invadido, naquele espaço, pelo exagerado acúmulo de perfume barato. No lado externo da construção, as luzes multicoloridas piscavam em sincronismo, dando a impressão de que compartilhavam com aquele acontecimento primeiro. A lua gotejava no infinito, um tanto quanto escondida e sem brilho, sob as nuvens dispersas, que metamorfoseavam naquela noite de inverno e projetaria para os anos vindouros uma história enraizada pelo limbo do egoísmo e pelo prazer sem limites da promiscuidade.
Edna, no entanto, com seu jeito espevitada, mal-educada, atrevida, manipuladora, conseguia mudar a rotina da Perestroika. Todas as mulheres da casa a temiam, por ser filha única da cafetina e proprietária da boate.
Mas, naquele instante, em especial, todas queriam ajudar. A parteira já havia fervido a água, pediu vários panos limpos. Foi rapidamente atendida. Contudo, parecia um desfile mal planejado, algumas mulheres, por quererem ajudar, acabavam congestionando o pequeno espaço e sufocando a parteira. Ela tomou as providências necessárias e expulsou a todas, com exceção de Odete.
Odete, a cafetina e mãe de Edna estava inconsolável. “Logo ela”, pensou, “tão experiente” e não percebeu a gravidez da filha, a não ser no dia anterior, quando uma das mulheres da casa lhe comunicou que a menina estava, pelo que tudo indicava, em trabalho de parto.
Como? Trabalho de parto?
— Você está louca, disse sem muita convicção. Porém, dominada pelo impacto recebido, saiu correndo ao encontro da filha, que por várias vezes tentou lhe falar, em forma de brincadeira :
—Mãe, tenho a impressão de que algo cresce e se movimenta dentro de mim.
—Você está gorda, minha filha, dorme até ao meio-dia, e em vez de se alimentar de forma saudável, come chocolate como se fosse a última refeição da vida.
— Imagine uma garotinha de apenas quinze anos, com essa barriga! Duvido que alguém queira namorá-la assim! Soltava o “verbero” e dava a conversa por encerrada. Entretanto, no instante que se deparou com a filha e entendeu o que estava acontecendo, isolou-se para refletir o drama de seu pecado.
Fora abandonada pelo pai de Edna quando esta contava apenas um aninho de idade. Passou fome, desilusão, humilhação. Foi seduzida para romances furtivos. Escorraçou alguns insolentes, não encontrando saída, resolveu usá-los em todos os aspectos. Entraria na deles, e os manipularia de forma lucrativa. Não precisou esperar muito. Um de seus amantes, que era casado e tinha a situação financeira de relativa tranqüilidade, espontaneamente ofereceu-se para alugar uma casa grande e confortável, onde ela poderia, além de receber sua visita, a de quantas outras quisesse.
— Você me quer eternamente puta, é isso?
Não falei nada disso — você está nervosa.
Chega de papo furado... Eu topo.
Assim foi feito, e o espaço alugado passou a se chamar : Flor da Perestroika, embora questionado por muitos, Odete afirmava - com certa ironia - que era um belo nome. Ninguém mais tocou no assunto. Certo dia, seu amante e benfeitor despediu-se e nunca mais voltou.
Odete em parte, dependente, penou para colocar em ordem as contas, mas, conseguiu. A filha Edna foi crescendo, sem o acompanhamento necessário. Odete era com freqüência chamada na escola devido às insubordinações da filha. Ela entendia que não era um exemplo a ser seguido, e sem dor na consciência, liberava-a de castigos, que poderiam, caso fossem exercidos, prevenir novos dissabores. Não o fez.
Agora estava pronta para lhe dar um neto, ou neta, tanto faz. Ela não se sentia confortável para enfrentar tal situação, considerando que tinha apenas trinta e dois anos e que imaginava sua filha muito imatura para assumir a maternidade. De outra forma, todas as meninas que engravidaram na casa, ela as obrigou ao aborto. “Será que teria coragem de fazer o da própria filha?” Pensou. Agora era tarde! Quem seria o pai? Isso ela tinha o direito de saber!
Chegada a hora, Edna mordia por entre os dentes, um pano que a parteira lhe dera, ajudando-lhe conforme podia para tornar-se o menos doloroso possível o nascimento da criança. Em volta da parteira estava Odete e as demais curiosas, com seus olhos profundos, maquiagens extravagantes. Observavam atentas o momento mágico na vida daquela menina-mulher. Estavam prontas para enfrentar a noite, que seria, com certeza, uma criança.
De repente, Edna geme e projeta o bebê ao encontro das mãos da parteira, que após breve revista, dá um tapinha na bundinha e ele, em pranto, dá sinal de que veio para ficar. Uma gritou: “É bonitinha, mas tão miudinha... Minha mãe teve a mim, de parto normal e foi com mais de cinco quilos.”
— Virgem Santa, disse outra imaginando o estrago e a dor, ia continuar falando quando foi interrompida pela parteira:
— Calma aí, benza a Deus, tem mais um bebê.
Minutos após, estavam as duas meninas no colo da jovem mãe, que nem sabia como lhes dar o peito para sugarem o colostro da vida.
Disseram dezenas de nomes, mas os escolhidos por Edna foram: Mariah e Mariana.
—Como você vai saber, Edna, qual é uma e qual é a outra? Perguntou uma das curiosas.
“Isso é apenas um detalhe, veremos conforme elas forem crescendo”, disse Odete
que prestava atenção nos comentários e achou que era hora de botar ordem na casa e fez todas irem cuidar de suas vidas. Agora tinha mais duas bocas para sustentar.
Uma semana após, Odete resolveu ter uma conversa com a filha para tirar da mente o que tanto a torturava e perguntou, sem rodeios, no momento em que entrou em seu quarto. Edna estava trocando a frauda de uma das gêmeas.
—Minha filha, eu preciso saber! Quem é o pai das gêmeas?
—Mamãe, eu transei apenas uma vez com ele e fiquei grávida. Tive minha parcela de culpa.
Ele é maior de idade?
Acho que tem vinte anos.
Então vai ter que casar com você.
Mãe, isso é ficção. Deixa que eu as crio do meu jeito.
Não acho justo ele ficar livre da responsabilidade de, pelo menos, compartilhar
a educação das crianças.
Por acaso meu pai a ajudou?
Está bem, não mais tocarei mais no assunto.
Os meses foram passando, a casa se tornou ainda mais freqüentada, homens maduros pagavam importantes valores para uma noite com Edna. Odete angustiou-se no início com a opção da filha, mas ela ganhava sozinha mais do que quase todas as outras juntas. As meninas foram crescendo e alugou um apartamento longe da boate. Contratou uma experiente babá e as gêmeas foram vivendo com todo tempo preenchido. Fizeram balé, estudaram idiomas, universidade de belas artes e se transformaram em duas belas jovens. Eram idênticas em tudo, inclusive no gênio firme e na mania de grandeza.
O tempo passou célere. Edna havia cumprido, em parte, a tarefa de mãe. Com as filhas moças, entretanto, a preocupação era conseguir mantê-las. Por sua culpa, alimentou-as com a vida de glamour. Para as atividades sociais, exigiam o melhor vestido, a melhor jóia, o melhor carro, etc. Edna foi vendendo todo o patrimônio que havia conquistado, com a venda do seu próprio corpo, para suprir os exageros das filhas. Certa ocasião, sentiu-se inferiorizada de finanças e contou às duas:
—Minhas filhas, eu preciso conversar com ambas sobre um assunto muito delicado.
Contou desde o inicio de que forma ela sustentou as duas durante mais de vinte anos. Quanto à sua mãe, Odete, ela ficara doente, muito doente. Teve que ajudá-la enquanto houve vida em seu pobre corpo, que durou três meses após detectado a enfermidade sem cura.
Mariah e Mariana foram ouvindo aquilo e conforme Edna avançava nos acontecimentos, mais triste ela ficava, porque sentiu a frieza e a firme decisão das filhas em se tornarem especialistas na arte de fazer dinheiro. Iriam montar uma grande empresa de sedução. O alvo: somente homens maduros e muito ricos.
—Isso não vai terminar bem, pensou em voz alta...
—Mamãe, queremos que você cuide de tudo para nós, certo? Deram por encerrado a conversa.
As gêmeas convidaram três amigas de carreira universitária, que haviam se formado com elas e passavam por dificuldades financeiras, em razão de não encontrarem uma digna remuneração nas atividades honestas. Além das citadas, selecionaram outras cinco, com formação em várias áreas. A intenção das gêmeas era solidificar uma empresa, cujo objetivo principal seria seduzir, ( porém com inteligência), seus afortunados clientes.
As oito moças passaram no teste e aceitaram a proposta das gêmeas. Na seqüência, alugaram uma bela casa no Jardim Social em Curitiba. Em pouco tempo, o movimento se multiplicava, com entrada e saída de carros, tais como: Mercedes, B.M.W, Jaguar, Ferrari, etc.
Edna estava impressionada com a avalanche de dinheiro que entrava naquela casa. Todavia, Mariah e Mariana queriam mais, muito mais. Resolveram incrementar um banco de dados, com informações diversas, tais como: cadastro geral de cada cliente, incluindo formação, patrimônio, identidades afetivas, enfim um registro que amarrasse de forma definitiva os fregueses mais ricos, caso porventura fossem alvos da investida gananciosa das gêmeas.
A intenção era fazer chantagem financeira, escolhendo um cliente a cada vez. Determinavam o valor a ser extorquido, conforme estudos sobre a disponibilidade em dinheiro vivo dos envolvidos. Em um ano, arrecadaram mais de cinco milhões de reais. Por se sentirem superiores e impunes, relaxaram a guarda e passaram da ousadia ao suicídio. Começaram a extorquir vários ao mesmo tempo.
Certo dia, entra alguém na casa, a convite de um empresário muito conhecido e rico. Edna, que era quem recebia a todos com muita afabilidade, estava apreensiva com as últimas loucuras das filhas. Nesse dia, em especial, ao defrontar-se com o acompanhante do empresário, amarelou, ficou trêmula e não conseguiu articular sequer uma única palavra. Seguiu rumo ao quarto e desmaiou. Mariah e Mariana, quando souberam do acontecido, ficaram preocupadas, receosas. Tentaram descobrir a causa, e como Edna nada falou, levaram-na para o hospital.
No dia seguinte, ainda no hospital, somente Mariah foi visitar sua mãe. Mariana, permaneceu frente aos negócios. Mariah percebeu sobretudo que a genitora estava com a aparência boa. Isso a acalmou. Ela tinha apenas trinta e seis anos.
O maior desejo de Edna era parar com tudo aquilo e viver modestamente em qualquer lugar do Brasil, mas as filhas queriam muito mais. Isso a preocupava deveras.
— Cadê Mariana, Mariah?
Ela ficou cuidando de alguns afazeres, mamãe.
Você conhece aquele homem que estava com o coronel Ildefonso?
Claro mãe, ele é namorado de Mariana, já se conhecem há mais de seis
meses. Parece que ele está decido a divorciar-se da esposa, se Mariana aceitar casar-se com ele. Edna pensou de coração:
__Oh, Deus ! Será que hei de pagar por todos os meus pecados de uma vez? Sei que jamais fui santa, mas venho tentando me redimir ao máximo nos últimos tempos. Perdoa, Senhor, as minhas meninas, elas não sabem o que estão fazendo. São orgulhosas e carentes. Se alguém tiver que pagar, que seja eu.
Passados alguns minutos, venceu o horário de visita, e Mariah prometeu que, se sua mãe não tivesse alta naquele mesmo dia, no dia seguinte, Mariana viria visitá-la. Mariah saiu e deixou Edna mergulhada nas profundezas do passado, horrorizada com o presente e suplicando forças, as quais não tinha, para não pensar no futuro.
No dia seguinte, quando Edna retornou do hospital, recebeu a notícia de que Mariana havia partido em viagem para a Europa. Ficou muito triste. Mariana devia ao menos tê-la comunicado. Como não o fez, restava-lhe administrar seus pensamentos até que ela voltasse, pensou.
Não seria tão fácil! Seus momentos seguintes sofreram minúcias de impactos letais. Passou a viver a solidão dos pecadores. Ao fechar os olhos, os pensamentos eram invadidos pelas cobranças do que não podia pagar. Ela havia feito muito além do que era certo, sabia disso, e já considerava o suficiente pago com a morte da mãe, que por sinal insistiu para que ela parasse de mimar as gêmeas. Até dizia: “Minha filha, você pode e deve ter uma vida diferente. Tem bastante dinheiro guardado. Suas filhas ainda não sabem de onde sai o dinheiro que lhes dão todo o conforto. Pense nisso! Que tal casar-se de vez e dar um lar para as meninas?”
Aquilo fervilhava em sua mente, tal quais palavras de acusação, ferindo mais do que chicote de aço. Por isso, já não mais podia cochilar sequer um minuto, sem o solavanco dos remorsos. Seus verdugos resolveram cobrar em doses homeopáticas aquele segredo, que ela necessitava que morresse ali, em suas lembranças.
Há momento em que a lágrima do dissabor cristaliza em nosso consciente e somente atinge a libertação, por completo, quando se converte em choro de consolação.
Oh! Deus Pai! Perdoa os meus pecados, as minhas faltas, a minha ausência, o
meu desapego com a beleza purificada. Eu já sofro há muito um amor proibido, o qual em outras épocas foi além do sonho adolescente. Quis provar o néctar do pecado. Nele, cruzei em meu ventre a semente do que considero a tônica do meu existir. O elixir supremo de uma vida com sentido. Foi um romance forçado, ele não queria, por isso o amei em silêncio, e continuei amando por todos os meus dias. Ainda o amo. E agora, Pai? Qual será o remédio e a cura para uma doença chamada “Amor”?
Edna se levantou um pouco, olhou-se no espelho, sabia que era bonita e até se
achava atraente, mas nesse instante estava com olheiras profundas, no branco de seus olhos castanhos claros percebia-se o avermelhado de minúsculas veias, porque era acometida de prantos aleatórios e remorsos sem fim. Os cabelos acobreados por sobre os ombros, eram bem cuidados e realçavam sua pele clara e sedosa. Seu corpo ainda não apresentava a moléstia da flacidez. Fazia com as filhas, diariamente, ginástica. Desse jeito mantinha seu corpo em forma, a despeito da alma que não tinha paz.
Depois de refletir inúmeras vezes sobre os pesos e as mágoas de outrora, resolveu tomar uma iniciativa, mesmo que paliativa, mas no decorrer do tempo, a mais coerente. Começou por reunir-se com as moças para conversarem sobre assuntos diversos; dentre eles, sobre os exageros que estavam cometendo, extorquindo aleatoriamente clientes com possibilidades de revide. Tinha desconfiança de que estavam sendo vigiadas, razão por sinal de seu estresse. Ficou chocada ao descobrir que as mesmas se sentiam no paraíso. Eram bonitas, desejadas, inteligentes e ainda recebiam fortunas para aparecerem em colunas sociais, faziam viagens internacionais para o mundo inteiro e se sentiam respeitadas.
Edna não desistiu, dedicou-se ainda mais para mudar o perfil dos negócios. Até já projetava a substituição da placa por outra nova com os dizeres bem definidos: “Agência Par Ideal”
Quem ficou muito brava com ela foi Mariah, que havia perdido a sensibilidade e a inocência, e é claro aprendera com a própria mãe(por mais que não fosse explícito) a caminharem sempre sobre os homens e não sob eles.
Com isso formou-se um clima, não de disputa, mas de intrigas, entre a mãe, a filha e as sócias, como eram chamadas as moças, protagonistas de muitas falcatruas e dissabores.
A casa tinha mais de vinte peças, distribuídas em doze quartos, quatro salas, ambientes de jogos, sala de cinema, academia completa, saunas, piscinas, restaurante de comidas típicas. Muitos empresários ficavam até quinze dias, sem sair para lugar nenhum que não fosse dentro de seus limites. Ali faziam suas transações e outras transas, of course... E, sem perceberem, tinham seus cartões clonados e suas vidas transformadas em caos. Contudo, boa lição para não se meterem com as panteras do Jardim Social!
Edna foi amenizando algumas situações, entretanto o pecado é mais forte do que o pecador. Mariah quis até neutralizá-la, caso ela insistisse em transformar a empresa em instituição de caridade.
—Mamãe, por favor! Quero que a senhora repense as suas atitudes. Os homens que
aqui se escondem, são pessoas de índoles pervertidas, eles fazem de tudo pelo dinheiro e por dinheiro. Nós temos como lema tomar apenas uma mínima parcela, é claro que utilizamos de meios um tanto quanto favoráveis apenas aos nossos princípios. Mas isso jamais fará diferença em suas exorbitantes contas bancárias.
—Eu sei, minha filha, que são pessoas ricas, e que o dinheiro que arrecadamos não será desfalque em seus projetos futuros, no entanto eu penso apenas hoje na forma de como conquistamos esses proventos. Somos inteligentes e conhecemos figuras que dariam um braço para se aliarem a nós, sem que fizéssemos nada com os traços da chantagem, da humilhação, da covardia, que favorece o pranto psicológico. As paredes nuas são testemunhas oculares das orgias que aqui se sucedem. Até quando estaremos impunes? Pense, minha filha, com carinho sobre isso, e quem sabe poderemos mudar o rumo dos nossos destinos? Sei que sou culpada por ter-lhes oferecido uma vida de ostentação. Eu não quero tirar isso de vocês, o que quero é que aproveitem as coisas boas que a vida oferece, porém sem riscos desnecessários.Minha intuição diz que corremos perigo!
—Puxa, mamãe! Você está mesma com problemas de consciência. Não
se preocupe, logo passa. Ah! A Mariana ligou e disse que estão se divertindo muito. Ela ainda disse que ao final da inusitada excursão, só virá ao Brasil para vê-la e retornará em seguida, pois conheceu um Dinamarquês lindo, um verdadeiro príncipe. Edna sentiu-se profundamente desprezada com a ausência e a falta de delicadeza da filha, porém não pôde pensar muito sobre o assunto, porque uma das moças, de nome Priscila, viajou durante uns quinze dias com um cliente, por sinal, desembargador.

Ao sentir-se chantageado pela jovem, que tinha idade para ser sua neta, não pensou nas conseqüências e mandou-lhe para a cadeia. Estava lançada a rede ao purgatório. A questão era qual peixe seria capturado pelas malhas da justiça...

Mariah deu até uma olhadela para a mãe, como se fosse uma acusação do que acabava de acontecer e, sem nada dizer, virou às costas e foi tomar providências quanto aos pormenores daquele caso. Entrou na sala, onde ficava o banco de dados, examinou a ficha completa do desembargador e ficou perplexa com a imaturidade de quem permitiu a chantagem do mesmo. Idade, 72, viúvo, há apenas oito meses. Mariah sabia o rumo ilícito das trocas de favores, mas no caso do desembargador era um atrevimento medíocre, abusar. Além do mais, ele tinha a ficha limpa. O fato dele ter ficado com uma garota de programa durante quinze dias, não seria aceito por parte dos familiares como um deslize e sim como afirmação de que estava vivo.
Mariah já tinha entendido esse lado, não queria de forma alguma aceitar a ponderação da mãe, contudo sentiu medo, e estando ausente sua irmã Mariana, que era mais equilibrada do que ela, enxergou-se em roupas de presidiários e sabia que seria joguete e amante de algum sapatão no presídio. Edna entrou logo em seguida. Sentou-se ao lado da filha e disse:
— Agora precisamos ser fortes, até agora pouco, tivemos a audácia de
caminhar na linha de frente. Agora, temos um inimigo muito mais forte do que todas nós e muito mais importante do que todo o dinheiro que já acumulamos.
— Vamos fazer o quê? Perguntou Mariah.
Retratar-se com ele.
E Priscila?
Nós temos duas opções, ou ele deixa como está e fica tudo como era antes ou pega pesado, usando seu prestígio para fechar a nossa casa. Se ele decidir pelo extremo, teremos um grande desafio pela frente.
—Você acha que iremos presas, mamãe?
Isso eu não sei, mas sei que, se fizermos bem feito desta vez, podemos ampliar
as nossas chances em busca da redenção.
—Mariana com certeza saberia o que fazer. Ela passou por várias situações parecidas e saiu-se bem em todas.
É diferente, Mariah! Disse Edna. Os outros lesados não quiseram, por
motivos diferentes, expor seus nomes ao caos da mídia.
—Estou com medo, mamãe!
Que bom, isso talvez venha justificar aquilo que conversamos, lembra-se?
Como haveria de me esquecer, você estava exatamente falando
disso quando tudo veio à tona.
É verdade, espero não ter falado da boca pra fora.
Ouviram um barulho de sirene e perceberam, ao sentir um calafrio na
espinha, que estavam vindo ao encontro delas. Os policiais entraram com tanta rapidez, que não deu tempo para avisar os clientes que estavam no local, com suas parceiras.
— Quem é a senhora Edna Sofia Biscoi? Perguntou o chefe do grupo.
Sou eu, respondeu Edna, sem muita convicção.
A senhora está presa, por seqüestro, estelionato, roubo, prostituição ativa, escuta
clandestina, chantagem, etc... Tem direito a ficar calada!
— Vocês não podem prender minha mãe, disse Mariah.
Não só podemos, como ela vai algemada para delegacia. — Podem revistar e
enquadrar a todos que estiverem nos quartos. Não importa que sejam famosos. Estamos de olho na Casa da Mãe Joana há muito tempo. Só não invadimos antes, porque os patos que vocês depenaram, ficaram com medo de mostrar seus ridículos traseiros na televisão. Riu da própria graça.
O resultado da batida relâmpago foi a prisão de várias personalidades influentes, no celeiro político e empresarial, inclusive, um juiz na ativa, um padre, um coronel da polícia militar, dois deputados, um senador e dois empresários, dirigentes de reconhecidas empresas e, também, um grande traficante internacional.
O curioso é que não foram encaminhados para a delegacia e sim para um local isolado. Era uma chácara e tinha vários carros oficiais.Edna, ao perceber que estavam indo para um cativeiro e não para delegacia, entrou em pânico, sendo em seguida controlada pelo pseudo-policial.
—Se der um pio, eu prometo que vai ter motivo para se preocupar...Agora,se colaborar... Quem sabe, não fiquemos amigos, ou amantes? Riu escandalosamente.
Enquanto isso, Mariana, havia acabado de chegar a Paris com Guilherme, e antes de irem para o hotel, foram visitar algumas lojas e enquanto se deleitavam com as belezas da cidade mais sedutora do mundo, Mariana resolveu ligar para o Brasil, no celular de Mariah.
—Alôuuuuu!
Mariana? Socorro, estão nos levando presas, disse Mariah, aflita.
Presas, quem?
Eu, a mãe e as...
— Com quem você está falando? Perguntou o policial que lhe tirou o fone da mão e num passe de mágica, já sem bateria, o devolveu para Marian, pálida tal qual fantasma e se sentindo como se tivessem lhe tirado um brinquedo.
Em Paris, Mariana sentou-se no primeiro banco que encontrou, colocou o celular na bolsa e Guilherme, o empresário que estava com ela e que a viu fragilizada pela primeira vez durante todos aqueles dias em que passaram juntos. Teve a nítida impressão de que não era a primeira vez que via aquela cena. Focalizou seus olhos nos movimentos lentos, lascivos, exuberantes, porém questionadores de Mariana, e inexoravelmente foi formando em sua mente uma estranha composição poética, cujos versos foram, ao debandarem-se de seu controle, saltitando em fila alfabética, para formarem rimas e ao serem fortalecidos tal qual soneto de Camões, adentrarem às curvas do cérebro em questão. Pela fisionomia exposta, tais pensamentos cobravam-lhe um sentimento mais próspero e singular.
Pesadelos gotejavam em versos, enquanto a alma poética cobrava a autoria, nos melindres psicológicos.
Guilherme, em êxtase, ao viver tal cena, recusava-se às lembranças do passado, mas sem controle, foi obrigado naquele instante a aceitar o que estava a incomodá-lo desde quando o coronel Ildefonso o convidou a conhecer a famosa boate e lhe fez o comentário: “Você presta atenção na mulher chamada Edna”. É claro que ele prestou, ela no entanto sem muito o considerar, virou-lhe às costas muito antes de formar a imagem que agora insistiam trazer-lhe na presença física de Mariana, que se levanta e vai em direção ao toalete.
Não é possível, é muita coincidência, (prestando atenção em Mariana), não pode ser a mesma Edna. Veio-lhe de chofre à mente o que ele jamais questionaria, se fosse compartilhado a tempo.
— Santo Deus, ela nunca me procurou, eu nunca soube de nada. Na ocasião eu estava apaixonado pela Flávia. Edna fora um relampejo de paixão. Ela era linda, mas cobiçada por todos. Eu nem tive culpa, quando ela me convidou para encontrar com o pessoal no parque, menos ainda que era uma cilada. Na verdade eu gostei, gostei muito mais do que queria. Fizemos amor uma única vez e foi divino. Depois disso nunca mais a vi e pensei que havia mudado da região. Com certeza, se voltasse a vê-la, teria rompido com Flávia. Como isso não aconteceu, casei-me com ela, sem a segurança de amá-la como antes. Uma coisa é verdade, jamais esquecerei o momento que passamos juntos. Nunca. Até hoje. Gostaria, no entanto, que fosse um sonho ou que não passasse de um clássico poema de Osíris, Neruda, Shakespeare ou qualquer outro mago dos pormenores adormecidos, ou que nunca tivesse acontecido. E agora? O que faço para sobrepujar essa realidade maldita, esse pecado suspeito e sem a defesa, que ampara o inocente? Queimarei meus dias no inferno do lamento. Será que pode existir perdão para um homem, que em busca de romances furtivos, acaba nos braços da própria filha?
Já não me cabe julgar, ou ser julgado, já não cabe a mim viver sobre o
ventre de satanás. A partir de agora, vou tentar fazer algo certo, ao menos uma vez na vida. Quem sabe, em alguma curva do destino, eu me encontre e me perdoe. Desolado com a descoberta, Guilherme vai caminhando e ao distanciar-se do trânsito louco, disca algum número no celular, fala muito rapidamente e desaparece na multidão, sem deixar saudades.
Quando Mariana volta do toalete, onde foi retocar a maquilagem, logo após aquela
reflexiva exposição poética; pasmem, donde antes se acomodava solícito, com os olhos saltando da cara para sua pessoa, o namorado e companheiro de viagem, agora encontrava apenas o vazio. Faz alguns movimentos com seus olhos e até tenta encontrar Guilherme nos confins da mente, porém as ruelas lhe eram desconhecidas e, por isso, a aglomeração de cabeças se misturam em labirintos. Ela deu de ombros. Se ele foi dar uma voltinha, ou resolveu fazer um teste, azar o dele, vou ligar para o Dinamarquês. E perdeu-se dentro da própria verdade.
De volta ao Brasil, vários homens, por serem agentes da lei, estavam encapuzados na grande sala, onde se encontravam, além de Edna e a filha Mariah, mais três das moças que tinham o controle de todo o dinheiro, depositado em um banco no Uruguai. Levaram um grande susto ao perceberem que dos cinco milhões que acusava em um recente extrato, somente conseguiram quatro. Um milhão tinha sido transferido para qualquer parte do mundo, questão de duas horas antes. O que estava chefiando o seqüestro, lembrou-se da ligação e imediatamente apontou a arma para cabeça de Mariah e ia puxar o gatilho quando seu celular toca.

Está bem chefe, você manda; mas a grana é nossa, quer queira quer não.
— Mudanças no plano, pessoal! Amarre a todos e vamos embora, vocês conhecem o chefe, quando ele dá uma ordem... Quando estivermos longe daqui, ligaremos para as mulheres dos cidadãos. Elas ficarão felizes, encontrando seus distintos maridos, entre tantas beldades... E novamente deu outra risada estrondosa.

Josias Moreira