Escuridão ao meio-dia

Chegar até o metrô já fora uma tarefa complicada. Agora, Flossie Duncan, sua filha Della, e o neto Andrew, de 6 anos de idade tinham, que encarar a apavorante perspectiva de sair da estação Paddington e caminhar até o Hospital de St. Mary, distante cerca de 200 metros dali. Ao meio-dia de sábado, 6 de dezembro de 1952, parecia que a noite havia caído. Nas ruas, as lâmpadas dos postes estavam acesas, mas pouco podiam fazer para dissipar a densa escuridão trazida por um manto sufocante de neblina tóxica.

- Tem certeza de que sabe como chegar lá? - Indagou Flossie ao desembarcarem do metrô na estação quase vazia, através do cachecol de lã que envolvera em torno da boca e nariz, como proteção. Em seus braços, o neto, boca e nariz também protegidos por outro cachecol, respirava pesadamente, olhos fechados. Volta e meia, tossia.

- Fui voluntária lá, durante a guerra - assegurou Della, que além de um cachecol, usava um par de velhos óculos de aviador. - Acho que encontro o caminho, mesmo nessa sopa de ervilhas!

- Temos que encontrar - ponderou Flossie.

- Eu sei - retrucou Della, empunhando uma bengala que pertencera ao seu pai, e que agora servia para tatear o caminho à frente, como uma bengala de cego. Tomou a frente e subiram as escadas para a superfície, por onde a neblina cinzenta descia em ondas, como se fosse fumaça de gelo seco.

Chegaram à superfície e mal se podia enxergar um metro à frente. As ruas estavam vazias, automóveis abandonados junto às calçadas, já que dirigir tornara-se quase impossível. O serviço de ambulâncias, que em circunstâncias normais já seria precário, parara totalmente de funcionar.

Tateando com a bengala junto ao meio-fio, Della parou subitamente.

- O que foi? - Indagou a mãe.

- Temos que atravessar a rua... é do outro lado,

Ladearam cautelosamente alguns veículos abandonados e finalmente depararam-se com uma grande construção em tons de cinza e vermelho.

- É aqui! - Exclamou Della, aliviada, ao chegarem a um grande arco de tijolos que marcava a entrada principal.

Contrastando com as ruas desertas, a recepção do hospital estava cheia de gente, principalmente idosos e crianças, quase todos aparentando estar sofrendo de problemas respiratórios. Della aproximou-se do balcão e reconheceu uma atendente.

- Rosa!

A interpelada encarou-a, surpresa. Finalmente, abriu um sorriso.

- Della... é você?

Saiu de trás do balcão e abraçaram-se.

- Você está mais magra... - observou Rosa.

- Todas estamos, não é? - Respondeu Della, tentando sorrir. - A dieta do racionamento.

A atendente olhou em volta.

- Fale baixo! Pode ter algum dedo-duro da Gestapo por aqui.

Della abanou a cabeça, negativamente, mas sussurrou a resposta.

- Não creio. Só gente idosa e crianças, doentes. Como o meu filho... tem bronquite, e essa neblina do inferno piorou o estado dele.

- Vou fazer o cadastro... - respondeu Rosa, voltando ao seu posto. - Me dê os dados dele.

Enquanto anotava as informações solicitadas, Rosa comentou:

- Nem os mais antigos lembram-se de ter visto algo parecido com essa neblina... é pior do que qualquer "sopa de ervilhas" de que têm recordação.

- Ouvi algumas histórias... - sussurrou Della de volta. - Dizem que os nazistas inventaram uma nova maneira de matar populações inteiras, por sufocação.

Rosa parou, caneta no ar.

- Ouvi essas histórias... desde que começamos a deportar os judeus para o continente. Mas eram apenas judeus, não é? Nós nos rendemos aos alemães, embora muitos dos nossos quisessem continuar a guerra... não creio que fossem usar algo tão perverso contra nós.

- Será? - A expresão no rosto de Della era cética. - Meu marido, que foi transferido para uma fábrica no continente, me disse que o carvão de boa qualidade estava sendo todo exportado para a Alemanha... e que nós estávamos ficando com carvão inferior para ser usado no aquecimento. Acontece que esse carvão, quando queimado, emite muitos gases tóxicos. Junte isso com a neblina, e o que é que você tem?

As duas mulheres ficaram em silêncio e olharam ao redor, para o saguão do hospital repleto de derrotados e vítimas da última grande guerra do século XX.

- [20-09-2018]