A Terra Não é Mais Azul - Os Últimos Reis - Búfalo Soldier's

As patas de cascos escuros tamborilavam diferentes timbres quando tocavam o asfalto empoeirado e desgastado pela erosão. Das rachaduras existentes no chão brotavam gramíneas e até pequenas moitas amareladas ressequidas. Eram vinte e quatro cascos, de patas, de pernas cobertas por uma pelagem negra, que aos poucos se revelavam pertencerem a búfalos, ao todo eram seis, enormes, com curvos e grossos chifres. Vinham sendo montados e conduzidos por homens, cinco deles fardados iguais com capacetes de motociclista pretos, botas pretas, calças pretas, jaquetas de couro pretas e luvas pretas, armados com arcos e aljavas cheias de flechas em suas costas, facões presos a cintura e pistolas em coldres ao lado das coxas.

Os animais trotavam calmamente criando um ritmo repetitivo e constante com seus passos. Marchavam por cima do que parecia ser uma antiga avenida à beira de um volumoso riacho de águas marrons, que invadiam quase metade da pista.

De repente eles param, os raios de sol fazem brilhar os focinhos e a pelagem suada dos animais. Diante deles se encontrava o corpo de um homem enforcado preso a um grosso poste de concreto, dependurada em seu pescoço uma placa com o escrito: “Manteia Distança Avastc”.

O sexto homem que vinha na dianteira estava vestido quase igual aos outros, mas não possuía capacete, o que deixava a mostra seus loiros cabelos desgrenhados.

- Nossa Senhora! A, F, A, S, T, E, S, E! É um milagre não o terem comido! Retirem o coletor de lá! Adiante! Ordenou aos berros apontando com a mão.

- Eu não consigo acreditar que eles comam carne humana e vivam dentro desta água podre! São uns...

- Cale-se!

- Me desculpe General!

O grupo retoma a marcha, percorrem um trajeto cercado por uma mata de grandes árvores, passam por um estacionamento do que um dia foi uma concessionária, onde agora carcaças de veículos cobertos por musgo se espalham como um tapete enrugado. Na margem do outro lado do riacho, podia se enxergar destroços de antigos prédios quase engolidos pela vegetação, e caído entre eles o tradicional “EME” amarelo da lanchonete MacDonalds.

Após alguns minutos, o grupo para. De dentro daquela água marrom, vêem saindo uma estranha criatura. Parecia ser um humano muito magro, com os ossos marcando a pele, caminhava desengonçadamente, às vezes apoiando ambas as mãos no chão. Estava nu, era careca e sua pele coberta por uma grossa camada esverdeada parecida com escamas ou algum tipo de fungo. Engatinhando de uma forma estranha ele se aproxima dos homens nos búfalos e diz com uma voz chiada e rouca:

- Por que motivo os senhores deixaram suas obrigações no centro da capital e vieram visitar o nosso tão miserável Clã? Acho que estamos com o Tributo em dia... Acho que estamos! Mas por outro lado tenho a certeza de que estamos nos comportando bem! Há meses estamos cumprindo os nossos acordos e não saímos de nosso confinamento... Digo. Nossas terras. Nossa gente apesar da fome e das doenças...

- Chega de papo furado! Não tente me enrolar com esta falsidade toda! Vocês conhecem as regras, paguem em dia os impostos e terão direito a terras, água, saúde, educação, segurança e alimentação! E neste semestre não recebemos nada de vocês, nem um grão de arroz, nem um toco de lenha, nem um pé de couve! Nada! Não recebemos nem um ovo sequer! Além disso, temos provas e testemunhas do ataque de vocês a Tribo Jafipe! E tem mais! Interrompe irritado o homem que liderava o grupo.

Um dos homens de negro surge carregando o corpo do coletor morto e o joga nos pés da criatura.

- Vai me dizer que não foi sua gente que fez isso?

- Isto é uma armadilha, uma traição contra o nosso povo... Vocês querem acabar com o nosso Clã! Juro que não fizemos nad...

- Já disse... Chega de papo furado! Vá de uma vez e diga ao seu líder que estamos esperando aqui por aquilo que é nosso! Interrompe novamente o homem que liderava o grupo.

A estranha criatura se movimentando desajeitada dá as costas e retorna para dentro do riacho, afundando lentamente e sumindo entre as águas barrentas que corriam devagar.

Não havia passado muito tempo desde a imersão do ser estranho no riacho, quando dezenas de outras criaturas semelhantes a ele começaram a sair de lá. Saem homens, idosos, mulheres e crianças, alguns cobertos com trapos velhos que pingavam molhados, outros, a maioria, estavam completamente nus. Pareciam zumbis, irritados, protestavam com palavrões. Em segundos tomam a avenida inteira, cercando, confrontando e agitando o esquadrão de búfalos. O aglomerado de estranhas criaturas abre caminho, dando passagem a um homem menos escamoso e de um porte bem mais forte que os demais, mas igualmente nu, observando com os olhos vermelhos uma cabeça humana decepada presa na sela do maior dos búfalos, ele diz:

- Ora, ora, se não é o covarde General marionete Ílio Franz... O que os trazem as minhas terras? Onde está o Rei do abastado, desejado e invejado Reino do Rio Grande do Sul, com aquela sua famosa feiúra de rachar espelho? Será que aquela xota em sua cara está cada vez maior e por isso não sai de seu Palácio para visitar os velhos amigos de infância?

- Não recebemos seu último tributo, e o penúltimo não foi o suficiente para cobrir as dívidas de seu Clã! E há ainda acusações de roubos e homicídios provocados por sua gente!

- General... Vocês me falam em divida... Mas eu digo que não existe divida! Meu povo está com fome, está doente! Está morrendo! Assim como todo o povo do reino nós também estamos insatisfeitos, e não aturaremos mais esta situação! Estamos cansados de sofrer enquanto vocês ficam lá dentro dos muros do centro, vivendo suas vidas fingindo que não existem problemas! Estamos cansados do descaso e da incompetência do Rei! Não recebemos água potável a mais de dois meses, e da última vez que nos trouxeram, além de pouca, era um líquido de péssima qualidade, aposto que o Rei não a daria nem para o Napoleão beber! Por estas e por outras, General, que eu repito: não existe dívida... Enquanto o reino estiver sendo mal administrado e vivendo esta desgraça, não se admire se um dia um Clã entrar em confronto com outro atrás de uma maneira de sobreviver! É a lei da sobrevivência... Deem-nos um tratamento digno, honrem os seus compromissos com o povo... E assim não precisarão ter medo que eu não cumpra com minha obrigação.

- Anipag, líder do Clã Ipiranga. Com estas palavras que acabam de ser declaradas por ti, te julgo culpado pelos roubos e homicídios realizados contra a Tribo Jafipe! Serás levado como prisioneiro e poderá escolher entre ter suas mãos decepadas para servir de exemplo para o povo, ou ser enviado para a prisão Azkaben!

O homem Jacaré ri debochadamente com as mãos na cintura enquanto o general continua a falar:

- E como punição por não ter contribuído em dia com seus impostos para o Reino, deverá ter sua cabeça arrancada e exposta no centro da Praça da Matriz... Mas caso tenha algo a contribuir a pena será retirada e poderás aguardar novo julgamento em liberdade! Agora... Vai lá e me traz o que tu tiver de melhor! Grita o General ferozmente.

- Podem trazer! Diz a criatura tirando o sorriso do rosto.

Novamente a multidão se abre dando passagem, e dela surgem dois jovens trazendo um galão de plástico com aproximadamente vinte litros de água. Eles o largam diante do bando de búfalos e desengonçadamente fogem rápido para dentro do riacho.

- Eu Anipag, Chefe do Clã Ipiranga, em nome dos meus irmãos, estou lhe devolvendo este galão de água como nosso tributo! Sabemos que é pouco, mas é só isso que temos! Não temos mais nada para lhe oferecer! Os tempos estão difíceis! Prometo que no próximo mês lhe entregaremos o melhor que tivermos! Mas, agora aceite General.

- Isto é uma brincadeira? Vocês jacarés canibais do inferno estão ousando brincar comigo?

- Não é uma brincadeira, é assim que vocês tratam seu povo! Esta água não é potável!

- Soldado experimente a água! Ordena o General zombando.

Um dos soldados de negro desmonta, caminha até o galão, o abre e derrama um pouco do liquido dentro de uma caneca que retirara do alforje de seu búfalo. Ele cheira, despeja um pouco em sua mão, olha atentamente e dá uma lambida:

- É D, senhor! Mas acho que está potável, senhor! Diz ele.

- Então coloque fora e me tragam o cadáver do líder para que nosso próprio Rei lhe arranque a cabeça! Vamos acabar com isso de uma vez! Ordena o General.

As criaturas não entendem a ordem, ficam confusas e se olham atordoadas, Anipag tenta protestar alguma coisa, mas é atingido com uma flechada no meio da testa. Uma confusão tem início, o soldado chuta e derruba o galão no chão, esvaziando-o. Alguns dos membros do Clã Ipiranga se jogam no riacho gritando desesperados fugindo da saraivada de flechas disparadas pelos soldados, outros se amontoam e tentam lamber a água que se espalha pelo asfalto, parecendo não se importar com as flechadas que atingiam suas costas.

Após o tumulto, com águas ainda agitadas pelo reboliço e cadáveres boiando ou espalhados pelo chão, uma última saraivada de flechas é disparada no riacho. O General e sua equipe, apelidados de “Buffalo Soldiers”, dão meia-volta, e do mesmo modo como chegaram, retornam. Troteando calmamente montados em seus animais em completo silêncio.

Jovito Rosa
Enviado por Jovito Rosa em 05/11/2018
Código do texto: T6495491
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