Dois Terços

O dia para Domenica havia sido bastante comum, um como tantos outros. Na gráfica onde ela trabalhava estava num momento calmo, do qual ela passeava, disfarçadamente, num site de roupas, buscando um modelo de vestido que fosse atraente e também coubesse em seu orçamento. Ainda sentada, ouvia um som estranho, do qual não sabia decifrar.

Soava como uma ameaça, e seu sexto sentido lhe dizia que algo de muito errado estava para acontecer. Era uma sensação que se assemelhava a algo como ter sofrido uma queda e não ter a noção exata do que aconteceria depois. Reparava que todos estavam agitados, e o número de pessoas na gráfica era menor. Junto dela, haviam mais quatro: seu patrão, um homem alto e meticuloso com trejeitos delicados, uma mulher de sua mesma idade de forte tendência religiosa, tão bela quanto a atenção social poderia chamar, um rapaz bastante animado que recentemente se tornava pai, e a prima do dono da gráfica, uma pessoa de tendência autoritária que dificilmente mostrava os dentes. Haviam mais atritos entre as duas no início, que foi diminuindo conforme ela pegava mais experiência e novos empregados iam chegando. Deles, após o ocorrido, somente a própria Domenica e seu ilustre chefe haviam "restado".

Dos outros só restava as roupas caídas ao chão que se notava. Era como se fossem desintegrados. Seu chefe, naquele momento confuso e nervoso, checava as roupas dos sumidos e fechava em seguida a loja, com receio que o que tivesse acontecido se repetisse lá dentro. Talvez não fosse o caso. Na rua haviam carros batidos. Um deles era um carro policial, como um guarda confuso no banco traseiro do veículo. No posto de gasolina do outro lado da rua pareciam haver menos frentistas que o comum, e esses estavam confusos. Domenica reparava que na farmácia ao lado só havia uma atendente, frente aos três ou quatro comuns por lá. Ela tentava ligar pros pais, observando uma mulher chorando, por causa do repentino sumido do seu bebê. Em seu braço restavam penduradas as pequenas roupas dele. Seu pai atendia o celular, mandando ela voltar pra casa, mesmo que seu chefe não quisesse. Sem pestanejar ele próprio pedia para ela voltar pra casa, enquanto fechava sua gráfica. O comércio local fazia o mesmo também. Aceitava prontamente quando ele oferecia carona para a casa dos país. Era um trajeto curto, mas reparava nos carros batidos e comércios fechados.

O pai de Domenica a aguardava na porta de casa. Assim como ela, não recebia retorno dos outros familiares, dos seus outros dois filhos e da esposa grávida. A televisão estava ligada e a mesma situação se repetia em vários lugares. Acidentes e pessoas confusas eram quase que uma regra. A mãe de Domenica era uma mulher da faixa de 40 anos, ruiva, branca, que fisicamente a lembrava muito. As duas tinham um tipo de olhar muito marcante, sendo certas vezes até confundidas como irmãs. Os cabelos ruivos, o nariz afunilado e o queixo largo eram uma boa herança genética que Domenica ganhava.

Seu pai era um jovem senhor de cabelos grisalhos, rechonchudo, de olhar um pouco cansado e calmo, sendo um tipo bem comum de pessoa. Com cinco décadas de vida vivia o auge da formação familiar, já que vinha mais um integrante com a gravidez mais ou menos planejada de sua esposa. Financeiramente não era um bom momento, já que somente Domenica e a esposa tinham trabalho efetivo. O irmão mais velho, no auge dos seus 20 anos, fazia apenas serviços temporários, de ganhos instáveis. O pai de Domenica estava bem agitado, angustiado por não conseguir contactar a esposa, que havia saído com uma amiga, e os dois filhos, que foram fazer um curso de informática e depois passar na casa de um primo. Só ele e Domenica estavam juntos. Televisão e rádios sinalizavam o caos da situação, e o pai de Domenica por prevenção trancava as portas e janelas. Ele até pensava em ir tentar procurar filhos e esposa, mas não queria deixar Domenica sozinha ou arriscar levá-la e e passarem por alguma complicação no caminho, fora a possibilidade de desencontro, caso eles voltassem pra casa.

Ela deitava no sofá velho da sala, recolhida numa posição fetal, assustada e pensativa. Recordava dum sonho que teve em que dois terços da humanidade sumir repentinamente. Fazendo um cálculo rápido, no emprego e em casa essa era a proporção das pessoas que sumiam. Chamava a atenção de seu pai quando ela saia da posição fetal do sofá, ficando ereta, como se tivesse descoberto algo. Era como se seu sonho se materializasse. Ela propunha tentar procurá-los junto com ele, já que ali estavam isolados. Seu pai ficava pensativo. Nunca foi um homem que refletisse muita autoridade, até porque aparentava ser mais novo do que realmente era. Ao contrário de ser um pai autoritário era bastante amigo dos filhos, sempre de aspecto mais engraçado.

Havia uma esperança que o dia posterior poderia começar melhor do que havia acabado. Esperança fraca, obviamente, pois Domenica e seu pai haviam dormido muito pouco e mal. As ruas estavam mais calmas que no dia anterior, mas era notável a desordem, como o lixo que acumulava, os carros soltos na rua, as lojas fechadas, sendo que aparentemente uma delas havia sido saqueada, que deixou pai e filha perplexos de dentro do carro.

O pai e Domenica imaginavam os possíveis lugares que a mãe e filhos poderiam estar. Era um pouco difícil de saber, pois a amiga da mãe de Domenica havia mudado de casa, e eles não sabiam nem onde era a casa anterior dela. Havia um milhão de opções de possibilidades, e os dois se centralizavam em quatro possíveis lugares para a mãe de Domenica e três para os irmãos. Tudo em vão, chamando a atenção o chão do supermercado, do qual um empregado fazia dois grandes montes de roupas. Era uma marca desse novo mundo. As pessoas que restavam iam se arrumando do jeito que dava.

Na volta pra casa eles viam uma movimentação diferente em frente a uma igreja. As pessoas estavam sentadas em cadeiras de plástico ressecado, atenciosas com o discurso do padre, um homem alto e magro, visivelmente abatido. Discursava num tom melancólico e estridente. O pai de Domenica parava o carro, se arrumando para participar daquela concentração, perguntando se ela não iria também. Com um balançar de cabeça ela acenava que não, preferindo ficar no carro, tentando ligar para quem quer que pudesse atender. No rádio sintonizava as opiniões e conclusões das mais variadas possíveis. A falta de pessoas para os serviços era um dos maiores destaques. Faltava gente, mas deveria se produzir bem menos daqui pra frente.

Ouvia o discurso de algumas lideranças globais a respeito do ocorrido. Se sentia tão imponente como um filhote que havia acabado de nascer, incapaz de fazer outra coisa, tirando o fato de só poder observar. Batia um forte desespero nela, ao saber que sua mãe e irmãos, e especialmente ela, havia partido sem ao menos se despedir. Não iria sentir mais seu tenro e delicado beijo, típico de todas as mães.

Observava seu pai timidamente numa das cadeiras. As pessoas estavam atenciosas nos dizeres do padre, pronunciando que ali era um início de um novo tempo. Ele afirmava que os sem fé e suas variantes foram os levados, mas em si o grupo era bem seleto, referente aos que sumiram. Até onde se sabia, havia uma proporção parecida dos sumidos em relação aos homens, mulheres, idosos, crianças, religiosos, ricos, pobres, políticos, esportistas ou teóricos e técnicos.

Seguir algo ou proliferar ideias específicas não era garantia de nada, muito menos de salvação. parecia que os que haviam sobrado, dois terços da humanidade, era por pura e simplesmente ação do acaso.