Os Frutos do Espírito

Fazer negócios com os gazirianos não era uma tarefa das mais fáceis. Primeiro, sua sociedade era uma das mais fechadas jamais contatadas pela Terra; havia apenas um espaçoporto em todo o planeta Gazir onde estrangeiros podiam desembarcar, convenientemente instalado no meio do equivalente local de uma selva tropical, para que ninguém pensasse em ir dar uma volta além das instalações astroportuárias. Segundo, mesmo o pouso nesse espaçoporto segregado era algo que exigia longas negociações, via rádio, com as autoridades locais, e desde que a carga em questão lhes interessasse. Aliás, e até por serem tecnologicamente tão avançados quanto os terrestres, só havia uma coisa que os gazirianos adquiriam: cultura. Detalhe: preferencialmente literatura, embora esporadicamente comprassem obras de arte ou partituras musicais. Ninguém fora de Gazir tinha qualquer ideia sobre o uso que faziam de suas aquisições, embora se especulasse que estivessem montando um banco de dados da cultura humana segundo seus próprios critérios. Isto, até o dia em que o capitão Brendan O'Casey recebeu um convite inesperado.

- Os gazirianos gostariam de convidá-lo a conhecer... o imperador?

O operador de rádio olhou espantado para o console à sua frente, depois apertou os fones nos ouvidos e finalmente virou-se para O'Casey.

- Senhor, é um convite oficial. Vão disponibilizar um transporte no espaçoporto, para levá-lo ao palácio do Grande Gazir!

Grande Gazir, naturalmente, era o título do imperador dos gazirianos.

- Fizemos alguma coisa diferente? - Indagou O'Casey, mão no queixo.

A nave de O'Casey, a SS "Tipperary", estava em órbita do planeta, aguardando autorização para pousar e entregar sua carga de livros encadernados em linho (uma lista bastante eclética que ia de James Joyce à Federico García Lorca), quando recebeu o chamado.

- Eles fizeram alguma coisa diferente desta vez, capitão - replicou o operador. - Disseram que haviam visto a sua ficha de serviço.

O'Casey olhou embatucado para o operador.

- E o que tem isso a ver com o convite? Não há nada de excepcional, para o bem ou para o mal, na minha ficha de serviço!

O operador abriu um sorriso.

- Há alguma coisa lá que tornou o senhor especial para os gazirianos. Espero que isso se reverta em mais vendas para nós...

- Já saberemos... - retrucou O'Casey desconfiado.

* * *

Com a "Tipperary" pousada e a carga sendo descarregada e minuciosamente conferida, O'Casey colocou um macacão limpo, engraxou as botinas, penteou o cabelo, e embarcou no aeromóvel automático que o levaria ao palácio do imperador. A viagem não durou muito e o palácio em si nem era dos mais imponentes - provavelmente o Grande Gazir possuía outros espalhados pelo planeta, e aquele simplesmente era o mais próximo do espaçoporto. O aeromóvel pousou numa plataforma elevada, onde o aguardavam três gazirianos: dois imensos guardas vestindo trajes cerimoniais e portando armas que lembravam antigas alabardas terrestres, e uma mulher, praticamente da altura dele, com um turbante dourado sobre a cabeça e um vestido preto, longo e reto. Os gazirianos eram criaturas humanoides, porém mais altos e corpulentos do que os terrestres, com pele cinza e glabra, ostentando grandes olhos amarelos com pupilas de gato.

- Eu sou a Primeira Escrevente Talath - apresentou-se a mulher num inglês formal, fazendo uma vênia. - Irei acompanhá-lo em sua visita ao palácio do Grande Gazir.

O'Casey retribuiu a reverência.

- Encantado, senhora. Capitão Brendan O'Casey, ao seu dispor.

Entraram num elevador ao lado da plataforma e desceram alguns andares. Dali, seguiram por um corredor trapezoidal que desembocava num amplo salão, esparsamente iluminado por lâmpadas antigravitacionais. Ao fundo do aposento, sobre um estrado, um trono dourado, e sobre ele, o Grande Gazir em pessoa. Havia dois tamboretes à frente do trono e foi para lá que Talath o conduziu, curvando-se antes perante o soberano. O'Casey tratou de imitá-la.

- O estrangeiro capitão Brendan O'Casey, conforme ordenou, meu senhor - disse a gaziriana.

- Grato, Talath - replicou o Grande Gazir, fazendo um gesto com a mão de seis dedos adornada de anéis. - Sentem-se; vamos conversar, capitão Brendan O'Casey.

Com Talath sentada à sua esquerda e os dois guardas ladeando o trono, O'Casey olhou para o soberano. Era difícil deduzir a sua idade, visto que os gazirianos viviam mais de 400 anos, mas ele não lhe daria mais de 100...

- Em que lhe posso ser útil, majestade? - Indagou O'Casey.

- Pois então, capitão Brendan O'Casey... - o Grande Gazir juntou as palmas das mãos. - Vi na sua ficha de registro que é um cristão. De alguma denominação específica?

- Bem... eu sou católico - reconheceu O'Casey assombrado. - Não-praticante, na verdade.

O capitão esforçou-se em lembrar da última vez em que entrara numa igreja, por conta da sua vida de mercador errante. Certamente, fora no Sistema Solar, muito provavelmente em Marte; uma capela ecumênica, quase certeza. A maioria dos que, como ele, passavam a sua vida no espaço, declaravam a religião mais para orientar os serviços religiosos em caso de morte do que por qualquer outra coisa.

- Foi o que me chamou a atenção na sua ficha de serviço - o imperador pousou as mãos nos braços do trono. - Há muito que queria conversar com um cristão, tirar algumas dúvidas sobre sua crença. A maioria dos mercadores que aqui vêm, não declara religião.

- Bem, majestade... eu não sou exatamente uma pessoa versada em religião - admitiu O'Casey.

-Justamente por isso; servirá como exemplo da média do seu povo - retrucou o Grande Gazir.

E apontando um indicador longo para o terrestre:

- "Católico" significa universal, não é mesmo?

- Sim, majestade - isso pelo menos O'Casey sabia.

- Estou pensando em adotar o catolicismo como religião em Gazir. E a minha primeira providência será realizar uma cruzada para retomar o Santo Sepulcro das mãos dos infiéis.

- O... o Santo Sepulcro? - Gaguejou O'Casey.

- O planeta do Redentor. A Terra, naturalmente.

O imperador o estava analisando, queixo apoiado na mão, cotovelo no braço do trono, as pupilas verticais nos olhos amarelos.

- Bem, majestade... creio que não temos mais necessidade de uma nova cruzada. As coisas na Terra têm andado calmas nos últimos séculos... - ponderou ele, cautelosamente.

- A árvore se conhece pelos frutos - retrucou calmamente o imperador. - Acredita que a sua tem produzido bons frutos? Pois se não o faz, já sabe o que acontecerá com ela...

- "Toda a árvore que não dá bom fruto, corta-se e lança-se no fogo." Mateus 7:19 - recitou Talath em voz baixa.

E foi então que o capitão Brendan O'Casey percebeu que o destino da Terra estava selado.

- [12-11-2018]