A Terra Não é Mais Azul - Os Últimos Reis - O Barão Bevilácqua.

Na zona leste de Porto Guaíba, na região “Paineira”, apelido dado por causa de uma única arvore que sobrevive ao caos do deserto rodeada por destroços e centenas de construções em ruinas. Fica a Chácara Bevilácqua, um oásis escondido no meio desta floresta de pedra.

Tibério Bevilácqua, o Barão da Água, como é conhecido. É um nobre comerciante muito rico da capital, que optara em não fazer parte de nenhum dos Clãs ou Tribos, vive em sua rústica fortaleza, com sua esposa e seus três filhos.

Todos os dias quando o galo canta, logo quando os primeiros raios do sol batem na janela e clareiam seu espaçoso quarto, Tibério segue a mesma rotina, levanta e cambaleando nu caminha até as esfarrapadas cortinas azuis e as abre por completo, deixando assim toda a luminosidade possível entrar. Espreguiça-se e depois veste sua mesma surrada roupa usada diariamente como uniforme de trabalho. Percorre um corredor que range a cada passo. Nas paredes dezenas de porta-retratos pendurados, mas que nenhuma das fotos pertencia de fato a alguém de sua família, todos eram desconhecidos, pra ele o que importava era o formato da moldura. O corredor terminava numa grande cozinha, uma mesa redonda ficava bem no centro, adornada com uma toalha branquíssima, algumas frutas dentro de um cesto e estranhas flores coloridas. Ele pega uma bergamota, começa a descascá-la, abre a porta que dava para rua, respira fundo e desce os degraus de uma pequena escadinha. No vasto pátio rodeado por grandes figueiras, ele cruza por patos, gansos, galinhas e seus pintinhos que ciscavam pelo chão de terra batida. Caminha até um quartinho e de lá sai atirando punhados de milhos que causam alvoroço entre as aves, chamando a atenção dos cachorros e gatos que dormiam atirados em baixo de pequenas árvores frutíferas e na varanda da grande casa de madeira cinza, velha e ressequida.

Nos fundos da casa havia uma vasta e variada horta, um chiqueiro com três porcos gordos, e um pasto cercado com oito cabras, dois bois, uma vaca e um terneiro. Havia também uma espécie de jaula construída com barras de ferro e taquaras, um celeiro onde eram armazenados os alimentos, onde os bovinos dormiam e onde se guardava dezenas de galões e tonéis de plástico azul.

Após dar de comer aos animais, Tibério volta para dento de casa. Sua esposa cortava um pão, enquanto a chaleira chiava fervendo no fogão:

- O pão parece ter ficado tri bom! Tu vai querer chá de que? Pergunta a mulher com a voz rouca de quem acabara de acordar.

- Hoje não vou tomar café Cléo! Já estou saindo, entrei só pra te dar um beijo de despedida e dizer que a Távia tem que parar de trazer bicho pra casa!

Ela sorri espetando a ponta da faca no pão. Os dois se abraçam e se beijam demoradamente.

- Eu te amo! Fala Tibério pegando outra bergamota.

Ele sai pra rua e se dirige ao estábulo onde dois pangarés castanhos ruminavam, ele chama os animais, coloca os arreios e os prende a um pequeno caminhão pipa que agora servia como carroça.

Através de um engenhoso mecanismo improvisado com alavanca, cordas e pedras, os reforçados portões da fortaleza são içados, e por ele passa o caminhão, vai devagar com suas rodas girando sobre um chão de areia alaranjada. Minutos depois de ter percorrido vários metros, Tibério desce para abrir uma pequena porteira, e depois de passar por ela pega a conhecida estrada chamada de Caminho do Meio que cortava Porto Guaíba de ponta a ponta.

O trajeto é tranqüilo e solitário, nenhum ser humano é visto enquanto a carroça anda em meio a enormes buracos e rachaduras no asfalto. Com exceção do centro histórico, a cidade está deserta, destruída como se tivesse passado por um intenso terremoto, destroços e escombros de antigas construções se encontram espalhados por todos os lugares sendo tomados por ferrugens e samambaias.

Após quase uma hora de viagem, depois de passar pela escura floresta Redenção, ele é abordado na entrada de um túnel que levava até o centro de Porto Guaíba por dois Búfalo Soldiers, que inspecionam rapidamente o caminhão enquanto comentam e fazem piadas sobre os jogos que aconteceram na noite anterior:

- O senhor devia lutar lá! Aqueles ditos gladiadores não passam de umas lesmas moles sem graça alguma! Dizia um deles levantando o visor de seu capacete preto.

- É verdade! Na última vez que tentaram assaltar o senhor, ouvi dizer que matou quatro homens do Clã dos Barretos apenas com o seu facão! Ninguém se mete com o senhor! Disse o outro soldado.

- Cinco, eram cinco ladrõezinhos bunda moles! Corrige Tibério com um sorriso no rosto enquanto a carroça passa pelo portão e adentra no túnel.

Após sair do túnel e passar por um longo viaduto que teimou em resistir ao tempo, Tibério já avista o seu local de trabalho; o Mercado Público, um local lotado de gente circulando a procura de alguma coisa, onde diversos tipos de produtos eram comercializados e vendidos em lojas conhecidas como bancas. Tibério possuía uma, a de número treze, onde vendia ou trocava água.

Na Chácara Bevilácqua existia uma fonte de água, que diariamente despejava na natureza litros e litros de água límpida, cristalina, despoluída e descontaminada, considerada uma das melhores do Reino, sendo até mesmo exportada para outras regiões. A água era um recurso natural muito valioso, e era daí que Tibério tirava o sustento da sua família, a maioria dos rios, lagos e lagoas existentes ou estavam poluídos ou contaminados, se tornando assim impróprios para qualquer tipo de consumo. Tanto a qualidade como o produto produzido na chácara eram extremamente raros e muito caro.

As horas passam rápidas e a jornada de trabalho chega ao fim no meio da tarde. A Banca treze do Bevilácqua fez bons negócios naquele dia. Tibério e seus funcionários mal tiveram tempo para almoçar, dos cinco mil litros que vieram no caminhão sobraram apenas dezoito:

- Pegue o restante e leve para sua família José!

- Chefe, eu sou o João! Disse o mais velho recebendo um galão.

- Pois que assim seja! José leve o restante e faça o que você quiser! Resmunga o patrão passando o galão para as mãos do mais jovem e indo fechar a banca.

Ainda é dia e Tibério resolve passar na Cel. Vicente, uma rua lotada com lojas de instrumentos musicais e milhares de partituras. A execução de músicas tocadas ao vivo, principalmente em piano, sejam em residências particulares ou nos estranhamente decorados salões de festas dos Clãs, com exceção das Orquestras que tocavam nos teatros, era a única maneira de se escutar música. Ele vai passeando distraído sem pressa pelas ruas extremamente limpas, passa na frente de um rico e luxuoso templo, onde fiéis empolgados cantavam dando glórias ao Senhor, cruza por atores de rua que improvisavam com poucos recursos alguns trechos de peças clássicas como Star Wars e O Tempo e O Vento. E para diante uma porta que exalava um ar gelado fedendo a charuto barato, ele escuta o som de um violão e barulho de copos, olha em seu relógio de bolso e resolve entrar subindo pela escada.

- Boa tarde! Uma cachacinha pro amigo! Pede Tibério se aproximando do balcão.

O boteco era imundo, bêbados caídos pelos cantos exalavam um fedor de álcool misturado com vomito e sei lá mais o que.

- Hora se não é o Barão da Água Tibério Bevilácqua! Então é verdade que proibiram o senhor de entrar no bar do delegado?

- Proibido eu estava, mas ia igual! Mas na última vez acabei dando uns tapa no príncipe e agora resolvi experimentar outros recantos da capital! Uma cachacinha, por favor!

- Se o senhor desejar, tenho uma coisinha mais forte do que cachaça! Sussurra o garçom.

- Me dá uma cachacinha, e uma dose desta tua coisinha aí!

- Mas não espalhe, pois como o senhor deve saber, esta coisinha é proibida em nosso reino!

- Hora rapaz, como dizia minha vó: o que é bom ou engorda ou é proibido!

- Ou vicia! Beba, experimente!

- Uma porcaria! Fala Tibério cuspindo o liquido no chão.

- Realmente não é de melhor qualidade, mas a tonturinha é da boa!

- Tu misturou mijo de gato aqui, só pode! Não te preocupa que eu pago! Me vê mais uma cachacinha!

- O coronel joga comigo uma partidinha de canastra? Me desculpe quis dizer barão!

Tibério se vira com o copo na mão e olha sério para o homem bêbado que acabara de lhe fazer o convite.

- Até jogo, mas não aposto e não posso me demorar! Minha esposa está me esperando! Mais uma cachacinha, por favor!

Aos tropeços Tibério chega ao estacionamento onde pega seu caminhão e começa o trajeto de volta para a sua casa. Bêbado ele sobe o Caminho do Meio tendo ás suas costas, entre arvores e escombros de construções em ruínas um lindo por do sol. Em seus pensamentos, somente imagens de sua mulher nua lhe vinham à cabeça. Não via a hora de chegar em casa e abraçá-la, senti-la, cheirá-la, beijá-la e apalpá-la.

O barulho da porta de entrada se abrindo é o sinal para Timóteo, o filho caçula de Tibério correr e abraçar seu pai.

- Pai, pai! Senti saudades do senhor! Foi lá ver se já chegou minha flauta?

- Vem cá! Olha só o que eu trouxe!

A criança fica admirada com a flauta transversal brilhosa enquanto seu pai cambaleia pela sala.

- Tu bebeu? Pergunta Cléo.

- Só um pouquinho!

- Arrã sei! Só um pouquinho! Eu te conheço Tibério. Vá se lavar, o jantar está quase pronto!

- Comprei também estas partituras, dá uma olhada!

- Vá se lavar! Depois da janta eu toco para tu ouvir! Alguma notícia sobre a guerra?

- Nenhuma novidade! Só escuto dizer que eles estão se aproximando! Que estão chegando! Que são tantos que o chão chega a tremer... E blá blá blá.

- Barbaridade! Que Deus nos proteja! Vá se lavar!

Mesmo em abundancia na Chácara, a água utilizada no banho era sempre reutilizada para alguma outra função.

No jantar comeram um picado de galinha com batatas, pães, banana, alface, tomate e beberam suco de maracujá. Saciados, as crianças correram para o chão da sala onde continuaram a brincadeira que tinham parado quando o pai chegara, Cléo desfaz seu coque e solta seus cabelos negros, pega as folhas da partitura e calmamente as analisa em pé ao lado do piano com um copo de suco na mão. Tibério não aguentando o calor tira a camisa, vai até a estante, de uma caixa retira seu cachimbo e o prepara para ser fumado. Ambos se sentam simultaneamente, ele em sua poltrona, ela no banco do piano.

Uma peça de Chopin começa a ser lindamente executada por Cléo, enquanto Tibério soltava círculos de fumaça, relaxando após mais um dia de trabalho.

Jovito Rosa
Enviado por Jovito Rosa em 14/11/2018
Código do texto: T6502212
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