A Terra Não é Mais Azul - Os Últimos Reis - Pesadelo

No topo de uma verde colina, montada em um agitado búfalo, estava uma mulher erguendo alto sua lança. Seus compridos cabelos negros esvoaçavam ao vento enquanto ela gritava no comando de um esquadrão de Búfalos Soldier parados abaixo dela.

- Atacar! Ordena ela a seus subordinados.

O inimigo se aproxima em forma de uma nuvem negra de fumaça. A mulher cerra os olhos se preparando para o impacto, que não ocorre. Em segundos, todos ali são engolidos e desaparecem na escuridão.

Cléo acorda aos poucos de seu sonho, abrindo seus olhos azuis e fixando o olhar nas tábuas de plástico no forro do teto. Tinha sido quase um pesadelo, mas ela não era uma mulher de se assustar. Agora estava pensativa tentando entender ou imaginar o que aquele sonho significava, enquanto seu esposo Tibério roncava ao seu lado.

- O que será que tem a ver uma coisa com a outra? Tenho que levantar!

Ela normalmente é quem acorda mais cedo na casa, algumas vezes é apanhada de surpresa com seu filho caçula Timóteo brincando na sala, mas isto desta vez não tinha acontecido. Ela cruza o corredor caminhando enrolada em uma toalha até chegar ao banheiro, diante do descascado espelho prende seus compridos cabelos negros e brilhosos que iam até a metade das costas formando o coque que habitualmente usava, abre o chuveiro e entra debaixo d’água. Cléo tinha a pele clara, levemente bronzeada, cerca de um metro e sessenta e oito de altura, seu corpo era rígido e cheio de curvas, uma mulher em excelente forma física devido às inúmeras tarefas do dia a dia que exigiam seu esforço, possuía uma saúde de ferro, com trinta e três anos não se lembrava da última vez que tinha ficado doente. Após o banho, ainda molhada, ela vai preparar o desjejum para a família, caminha ereta, elegante como se estivesse desfilando, era uma pessoa aparentemente muito calma, tranquila e muito séria o que era demonstrado no seu jeito de falar.

O café da manha da família normalmente era constituído por broas ou pães assados que eram servidos com geleias de frutas acompanhados por chás de variados sabores.

Assim que seu marido saía para trabalhar, ela e seu filho Otávio começam os trabalhos da Chácara, a cada dia uma atividade diferente para ser feita, desde cuidar da horta, recolher ovos, reparos nos muros e até mesmo partos de animais. A única tarefa que era realizada sagradamente todos os dias fizesse chuva ou sol, era de reencher os barris e tonéis com a água, deixando-os preparados para serem vendidos no dia seguinte.

Otávio era um jovem rebelde, de pele morena, de cabelos e olhos castanhos escuros. Fazia tudo sempre contestando e de má vontade. Vivia frustrado por ser proibido de realizar seu sonho de se tornar coronel como seu pai um dia foi. Gostaria de fazer o que nenhum homem tinha coragem de fazer; ir além das fronteiras, ultrapassar os limites conhecidos, buscar saber o que estava acontecendo pelo mundo afora e trazer notícias de outros continentes. Era forte e ágil, e também um excelente acrobata, mas seus pais não deixaram ele se alistar no serviço militar quando ele completou os doze anos, a idade que os recrutas começam os treinamentos. Agora já estava como quinze anos, a idade limite. Enquanto trazia do galpão tonéis vazios e os carregava de volta cheios, pensava sobre a guerra que se aproximava:

- Mãe! A senhora falou com o pai? Ou nem tentou de novo? Pergunta o rapaz deixando cair o pesado galão do chão.

- Por favor Otávio, não começa! Não começa! Tu sabes que eu não vou falar com o teu pai a respeito deste assunto! E que por mim tu não vai se juntar a exercito e nem a merda de guerra alguma! Pare de incomodar! Grita Cléo engatando uma mangueira num galão.

- Mas mãe! O Império em poucos dias estará aqui tomando o que é nosso! Sozinhos não poderemos contra eles! Sou mais útil lutando lá do que carregando água aq...

O jovem rapaz tem seu discurso interrompido pelo estalar de uma das armadilhas de seu pai sendo acionada. Os cachorros soltos pelo pátio correm latindo e rosnando todos na mesma direção, ao lado da casa, o taquaral da jaula balançava violentamente;

- Vou soltá-los! Diz Otávio.

- Cala a tua boca! Silencio, reconhece? Pergunta Cléo se referindo a gritos de socorro de uma voz.

Os dois seguem rápidos saltando grossas raízes que brotavam da terra. O portão se abre lentamente após Cléo ter acionado uma alavanca. Do outro lado, começa a surgir uma senhora com a perna direita toda ensanguentada, sendo amparada por um senhor:

- Seu Darci, Dona Dulce! Pelo amor de Deus vocês estão bem? O que fazem hoje aqui? Otávio me trás um pano!

- Viemos pegar um pouco de água minha filha! Sabemos que hoje não é o dia combinado, mas com estes boatos de bárbaros invasores e a guerra que se aproxima, resolvemos abastecer e fazer um bom estoque para a nossa Casa!

Otávio chega com um pano, e ele mesmo começa a fazer o curativo enquanto Cléo fica em pé com as mãos na cintura;

- Aperte bem! Deveríamos ter lavado antes! Onde estão os membros da cooperativa para ajudá-los?

- Todos foram para a guerra! Homens e mulheres, todos que estavam em condições de se juntar ao exército! Só ficamos nós, os anciões!

- Entendo! A senhora ficara bem... O machucado não é profundo, em casa a senhora limpa e coloca um pouco de babosa em cima! Meu filho traga uns cinquenta litros de água e coloque na carroça de seu Darci aqui! Diz Cléo batendo nas costas do senhor enquanto seu filho a olha com reprovação torcendo os lábios.

- Muito obrigado senhora Bevilácqua, não sei o que seria de nossa Cooperativa sem as doações da senhora! Desculpe o susto que lhe demos, e nos desculpe também por hoje não podermos ficar para tomar um chá e ouvir a senhora tocar o seu piano! Dizem que tropas imperialistas estão chegando pelo litoral e que hoje a noite começa o ataque a Porto Guaíba! Fala a senhora com uma voz tremula típica de sua idade subindo na carroça puxada por dois pequenos animais, parecidos com bois.

- Capaz Dona Dulce! Somos amigas há anos, vocês viram meus filhos nascer, nos ajudaram muito logo no inicio quando eu e me marido viemos morar aqui! É sempre um honra para gente ajudar no que podemos!

- Pronto! Aí está! Diz o filho, colocando o galão em cima da carroça sem parecer fazer muito esforço.

- Muito obrigado meu jovem! Em nome da Cooperativa de Vestuário Bom Jesus, eu agradeço! O senhor beija as mãos de Cléo e sobe na carroça, manobrando os mini bois e indo embora, sumindo na trilha entre as arvores!

- Eu tenho que ir mãe! A senhora ouviu! Sabe do que eu sou capaz! Sabe que sou mais útil lá do que aqui... E sabe também que o pai também deveria vir junto!

- Talvez tu estejas correto! Talvez... À noite falarei com seu pai! Agora venha! Vamos ver o que sua irmã fez para o almoço!

Os dois voltam acompanhados dos cães, enquanto o portão baixa lentamente. Ao chegarem à cozinha encontram as panelas de barro e as velhas frigideiras de inox no fogão, mas nem sinal de Otávia. A mãe grita alto o nome da filha!

- Bú!!! O gás acabou! Faz a menina tentando assustá-los, chegando correndo pela porta do corredor.

- Onde está Timóteo? Onde você estava? Não me diz que você foi lá de novo! Otávia Madalena, eu já te disse que não é pra ti ir lá! Tem um monte de bicho aí pra ti brincar, porque tu cismas em ir lá? De noite vou falar pro teu pai tu vai ver só! Não vou sossegar enquanto ele não se livrar daqueles bichos!

- Mas mãe... Pra que tantas perguntas? Timóteo tá na sala brincando com a cabeça no mundo da lua! Eu ouvi a movimentação e fui ver o que estava acontecendo, vi eles brabos e agitados! Daí fui lá conversar com eles... Não tem por que se preocupar, não vão me fazer mal... O velhinho é cego coitado, vive batendo e esbarrando em tudo! E a Capitolina é um amor, a coisa mais meiga e fofa...

- Chega Otávia! Já te disse! Está bem avisada... Vão se lavar, enquanto eu pego lenha para terminar o almoço!

O almoço foi arroz de carreteiro com ovos fritos, prato que Otávia mais gostava de fazer quando tinha outras coisas em mente e queria terminar rapidinho de cozinhar.

- O pai de vocês tem que parar de trocar água por bugigangas e trocar por arroz! O nosso já está acabando... E as prateleiras lotadas de cacarecos... E se tiver guer... E se vierem estes tempos difíceis que promete, temos que ter bastante comida estocada! Lembra-me de falar isso de noite pro teu pai Timóteo!

- Sim senhor capitão! Fala prontamente o filho caçula terminando de comer.

A tarde chega junto com preguiça e sono, os quatro se deitam espalhados pelo pátio, todos em redes estendidas entre arvores ou debaixo da varanda, todos menos Otávia que improvisou uma cama com lençóis no chão, rodeada por cães e gatos, estava deitada de bruços, com as mãos sujas de grafite.

- Princesa! Escrevia ao lado do grande gato desenhado em um papel.

Todas as tarde eram iguais, eles dormiam e ao acordarem Cléo separava algumas horas para a educação dos filhos, dava-lhes aulas sobre diversos assuntos e conteúdos, os principais eram de leitura e escrita.

Naquela tarde, como o gás havia terminado e ela já não tinha mais a liberdade de ir pegar um botijão no antigo deposito, onde agora um dos clãs dominava o local, e cobrava muito caro, Cléo vai mato adentro com um machado atrás de lenha para a janta. Voltou carregando toras e mais toras entre os braços.

- Isto deve ser o suficiente! Depois que Cora se casou e foi embora parece que o trabalho por aqui só aumentou! Amanhã tu vens comigo Távia!

- Sim mãe! O Timóteo já tomou banho e está lendo lá no quarto! A senhora viu a Fifi?

- A gata cinza? Não vi! E o Otávio onde está?

Jovito Rosa
Enviado por Jovito Rosa em 16/11/2018
Código do texto: T6503947
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