Memórias do corpo

[História anterior: "Carga"]

Por que sentia tanto sono? Estava quase sempre modorrando, mente confusa, fragmentos de ideias que se chocavam e que não faziam sentido. O Orbe lhe dizia, em sua voz sem palavras, que aquilo era para tornar a espera menos tediosa.

- Mas há tanto aqui para ver - reclamava ela, nos momentos em que se permitia focar o pensamento em algo menos onírico.

- Você não precisa se mover para ver tudo o que há - retrucava o Orbe.

Ela sabia disso, claro. Mas não lhe parecia... correto. Houve um tempo, lembrava-se vagamente, em que precisava caminhar para fazer coisas e falar com pessoas. Agora, lhe bastava estender-se e abrir a mente, e as coisas vinham até ela - de uma certa forma. Às vezes, parte dos seus sentidos era obliterado ou havia novos que só muito vagarosamente ela começava a interpretar: radiação, campos magnéticos, feromônios... palavras que faziam sentido em alguma parte recôndita de sua mente, embora não entendesse bem o porquê.

- Educação formal - pensou consigo mesma, e aquilo lhe deu um certo conforto.

- Educação formal é a forma de transmissão de conhecimentos na sua espécie - havia explicado o Orbe. - Os mais velhos repassam seus conhecimentos aos mais jovens desta forma.

- Eu recebi educação formal? - Indagou ela, sonolenta.

- Decerto que sim - afirmara o Orbe. - Entre nós, tal é desnecessário, vimos que fazemos parte do mesmo contínuo. Você é parte de mim, e sabe o que eu sei, embora ainda não consiga entender muito do que sabe.

- Se somos parte do mesmo contínuo, por que eu o vejo como algo em separado? - Questionara ela certa feita.

- Porque isto é mais confortável para a sua mente no presente estágio. Uma esfera azul flutuando no ar... foi isto o que me imaginou sendo. Serve para focar seus pensamentos quando quer me perguntar alguma coisa. Algum dia, bastará se voltar para dentro e encontrará lá a resposta.

Intuitivamente, ela sabia disso, mas tinha a necessidade de conversar.

- Por que as pessoas conversam? - Era outra pergunta que volta e meia se fazia.

- Porque elas não fazem parte do mesmo contínuo - era a resposta costumeira do Orbe. - Pessoas são unidades discretas.

- Não são contínuas como nós?

- Você é parte de mim, mas mantive sua individualidade para que pudéssemos conversar. De outra forma, talvez não fosse possível me comunicar quando outras pessoas vierem até aqui.

- Quando estas pessoas virão?

- Eu não sei. Mas tenha certeza de que virão, provavelmente porque precisei absorver você para entendê-la e ter um canal de comunicação com os que vierem depois.

- Poderemos conversar com as pessoas?

- Talvez não do modo como você faria em sua forma original... mas daremos um jeito.

E, num dia qualquer, despertou em meio a um sonho em que seu corpo se fundia com as águas do mar, e subia para a atmosfera convertido em vapor. Subiu tanto que tocou a fímbria do espaço e ali sentiu que uma astronave havia acabado de entrar em órbita do planeta.

- Pessoas - disse de si para si.

- Elas vieram por você - respondeu o Orbe.

Precisava de um corpo, pensou. Pessoas têm corpos, ela lembrou. Como iria falar com as pessoas sem um corpo? Uma sensação de pânico a invadiu.

- Eu não me lembro como era o meu corpo!

- Eu vou tentar ajudar - prometeu o Orbe.

E quando a vedeta "Celestial" do cargueiro classe M "Nan-Shan" pousou em NR-416b, seus tripulantes avistaram o que parecia ser uma cópia malfeita do seu próprio veículo. De dentro da contrafação, a passos trôpegos, emergiu uma figura mal reconhecível como humanoide, seu corpo disforme coberto por uma pintura que imitava o macacão cáqui dos funcionários da Companhia.

- [21-12-2018]