Uma americana em Paris

O Café Bar du Brésil, em Marais, Paris, estava cheio naquele início de tarde de outono; gente se espalhando pelas mesinhas charmosas sobre a calçada, tomando uma taça de vinho e conversando amenidades. Não exatamente o perfil do Pioneiro Dmitry Alekseev Siyankovsky e sua acompanhante, Aurelia Fletcher Wyatt, sentados em torno de uma garrafa de Perrier e dois copos.

- Sempre me perguntei quando os Estados Unidos da América entraram pelo caminho em que... bem, se encontram hoje - declarou diplomaticamente o Pioneiro, tomando um gole da sua Perrier gelada.

Aurelia sorriu por trás dos óculos escuros de deficiente visual.

- O caminho que justifica que pessoas como eu ainda existam, imagino que gostaria de dizer - replicou ela. - Sob o ponto de vista político, deve ter sido a partir do momento em que não aceitamos a Détente no século XX. Mas não creio que seja a isso que esteja se referindo, não é?

Antes de responder, o Pioneiro tornou a encher os copos que estavam se esvaziando.

- Tudo seria tão fácil se apenas aceitassem a correção de problemas hereditários! - Declarou com veemência. - Não posso entender como um país, por questões religiosas, condena os seus habitantes a penar com mazelas que já possuem soluções aprovadas pela medicina há décadas!

- O problema é a origem destas soluções... - suspirou Aurelia. - No meu país, são vistas como coisa do diabo. Sim, em pouco mais de um século, nos tornamos uma quase teocracia, que despreza a ciência e a tecnologia, principalmente se tem origem extraterrestre. Nascer com alguma incapacidade, visual no meu caso, é apontado como uma imposição divina; não podemos ir contra uma determinação de Deus, sob pena de padecermos a danação eterna.

A jovem havia dito aquelas palavras com tamanha resignação, que o Pioneiro perguntou-se se ela aceitava passivamente o seu destino. A impressão desfez-se pouco depois.

- Não significa dizer que eu considere isso correto - prosseguiu Aurelia, aprumando o corpo. - Mas enquanto quiser permanecer como cidadã dos Estados Unidos da América, tenho que me submeter às suas leis.

- Imagino que dentro da sua sociedade, seja considerada uma pessoa de posses... sejam lá quais forem os parâmetros que regem essas avaliações - ponderou o russo. - Por que não fica de vez na França, e opera os seus olhos, para enxergar como todos à sua volta?

Aurelia exibiu uma expressão meditativa.

- Confesso que essa ideia já me passou pela cabeça várias vezes - revelou finalmente, levando o copo de água aos lábios. - Mas não sei se teria coragem de cortar os laços com minha família, procedendo desta forma.

- Te condenariam ao ostracismo? - Questionou incrédulo o Pioneiro.

- Seriam obrigados a isto pelo governo dos EUA; poderiam perder privilégios e sofrer represálias - admitiu Aurelia.

- Assombroso! Pelo visto, encontraram o método coercivo perfeito para manter o status quo - avaliou Dmitry Alekseev.

A jovem concedeu-lhe um sorriso por trás dos óculos escuros.

- Enquanto isso, ao menos posso vir à Paris e desfrutar de um pouco de liberdade, ainda que temporária.

- A liberdade de um pássaro numa gaiola dourada - comentou ele.

E percebendo que o sorriso se apagava no rosto dela, acrescentou:

- É triste dizer isso, mas li certa vez que há muitos séculos, os caçadores cegavam pássaros para que cantassem melhor.

- Sem distrações para interferir em sua performance? - Indagou ela pensativa.

- A beleza vem com um preço - retrucou Dmitry Alekseev.

- [18-01-2019]