Fora de cogitação
Passava pouco das 21:30 h, quando o telefone começou a tocar insistentemente na residência do chanceler recém-nomeado. Um secretário foi atender e instantes depois, bateu na porta do escritório, onde o político trabalhava num discurso que pretendia fazer dias depois.
- Senhor... era o chefe de polícia - informou, ao receber ordem para entrar. - Pediu que lhe avisasse que o Reichstag está em chamas.
A reação do chanceler foi estranha. Em vez de se mostrar chocado, abriu um sorriso feroz.
- Em chamas? E já prenderam o responsável?
- O chefe de polícia disse que foi um raio.
O chanceler ergueu-se como que projetado por uma mola. Apoiou as duas mãos na mesa de trabalho, corpo inclinado para a frente, rosto crispado.
- Como assim... um raio? Estamos no inverno... caiu neve a pouco!
- Um raio, senhor. Ele foi taxativo. Disse que isso não tinha nada de notável, fora a infelicidade do incêndio.
O chanceler deu um murro na mesa e começou a gritar:
- Aquele maldito estúpido! Um raio! Como pode ser isso de raio! Nem houve tempestade! Tem que haver um culpado!
Apreensivo, o secretário segurou a maçaneta de latão da porta, pronto para sair.
- O senhor deseja que ligue para o chefe de polícia, para falar diretamente com ele?
O chanceler inspirou profundamente, tentando recompor-se do rompante inesperado. Ajeitou os cabelos lisos, que haviam caído sobre a testa.
- Não! Amanhã eu irei até a chefatura de polícia e vou exigir explicações detalhadas sobre esse raro fenômeno meteorológico. Só espero que ele não comente com mais ninguém sobre o que acabou de me dizer!
E com um gesto de mão, dispensou o secretário, que saiu dali mais do que depressa.
* * *
Ao acordar na manhã seguinte, o chanceler recebeu os jornais do dia, juntamente com o desjejum. A manchete do "Frankfurter Zeitung" quase o fez ter uma síncope: "RAIO ATINGE O REICHSTAG. BOMBEIROS DEBELAM O INCÊNDIO".
Hitler engoliu um palavrão, fez uma bola de papel com o jornal e o atirou numa lareira próxima. Depois, enquanto tomava o chá, começou a pensar em como convenceria o presidente Hindenburg a assinar o decreto que lhe daria poderes ditatoriais e permitiria dar um fim à odiada República de Weimar.
Estava fora de cogitação incendiar o Reichstag novamente.
- [21-04-2019]