Agulhas no palheiro

O presidente passou uma vista-d'olhos pelo resumo de inteligência, sem muita paciência. Os assuntos ali tratados pareciam muito distantes da sua realidade cotidiana. Ergueu os olhos, contrafeito, para o ajudante de ordens, que aguardava pacientemente pela reação do chefe.

- Projeto West Ford? Os russos estão protestando por causa de uma experiência da época da Guerra Fria? Já não assinamos um tratado com eles, ou algo assim?

- Sim, senhor. O Tratado do Espaço Sideral, de 1967, que, entre outras coisas, proíbe qualquer nação de colocar armas de destruição em massa em órbita ou sobre qualquer corpo celeste, a Lua inclusa.

- Pelo que vejo aqui, - replicou o presidente, correndo uma linha do relatório com o dedo - o tal projeto sequer incluía armas atômicas em órbita. Eram cargas de... agulhas de cobre!

- Precisamente, senhor - acedeu o ajudante. - Foram três lançamentos de foguetes no início dos anos 1960, transportando agulhas. O objetivo era criar uma ionosfera artificial, que nos permitiria manter nossas telecomunicações operando, mesmo no caso dos soviéticos destruírem os cabos submarinos, que conduziam a maior parte das comunicações mundiais naquela época. Isso foi antes dos satélites, como deve recordar.

- Não me recordo, mas entendo porque esse projeto foi cancelado - retrucou o presidente. - E a principal acusação que nos fizeram foi de poluir o espaço?

- Isso causou certa celeuma na época, senhor - admitiu o ajudante. - Não somente com os soviéticos, mas até mesmo entre nossos aliados, os britânicos. O problema não era somente o dos detritos espaciais, que então nem se constituíam numa grande ameaça, mas na interferência nas observações feitas por astrônomos e radioastrônomos. Finalmente, nosso representante nas Nações Unidas conseguiu convencer todos de que as agulhas permaneceriam em órbita por um período curto... não mais de três anos.

- Imagino que tenhamos cumprido nossa palavra - ponderou o presidente, apoiando os cotovelos na mesa e entrelaçando as mãos.

- Pela maior parte, sim. Mas alguns grupos de agulhas não foram distribuídas nas órbitas certas e continuam em órbita... até hoje.

- De quantos grupos estamos falando, exatamente? - Indagou o presidente, com cara de poucos amigos.

- Cerca de... 40, senhor presidente.

- Quarenta! - Exclamou o presidente, dando um tapa na mesa. - E agora os russos querem que eu limpe a bagunça deixada por algum democrata?

- Na verdade, a acusação é mais séria, senhor. Os russos nos acusam de estarmos escondendo algo nestas nuvens orbitais de agulhas.

- E estamos? - Indagou o presidente, sobrolhos erguidos.

- Não, senhor. Mas a acusação dos russos parece ter um certo fundamento. Verificamos que a massa dos grupos de agulhas em órbita aumentou ao longo dos últimos cinco anos. Quase como se algo houvesse sido colocado no meio delas.

- E não apontamos um telescópio para lá, para descobrir do que se trata?

- Isso foi feito senhor, mas seja lá o que for, é algo que absorve a luz quase por completo.

- Como um buraco negro?

- Não, senhor. Um buraco negro deste tamanho causaria perturbações em órbita que já teríamos detectado. Trata-se de um objeto material, quase perfeitamente circular, pelo que pudemos avaliar. Há cerca de 25 deles, atualmente, todos usando as nuvens de agulhas como proteção contra detecção. Por isso os russos nos acusam de estarmos desrespeitando o tratado de 1967.

- Se eles acreditam nisso, porque não foram verificar in loco? - Questionou o presidente.

- Eles foram, senhor presidente. Mandaram uma sonda não tripulada até um dos grupos de agulhas mais próximos... e a sonda perdeu contato com o controle da missão à cerca de 300 km do alvo.

O presidente permaneceu em silêncio, mãos entrelaçadas.

- E o que esperam que façamos? - Indagou finalmente.

- Caso confirmemos que não se trata de algo nosso... e não é... esperam que autorizemos o uso de força letal contra o que quer que esteja se escondendo nas nuvens de agulhas.

- Estamos falando de armas convencionais? - Questionou o presidente.

- Nosso receio é que tenham que recorrer ao armamento nuclear... em violação ao tratado de 1967. Por isso precisam da nossa concordância.

O presidente espalmou as mãos sobre o relatório, e resmungou entredentes:

- Malditos democratas e seu lixo espacial!

E em voz alta:

- E se for um truque dos russos?

- E se não for, senhor? - Arguiu o ajudante.

O presidente decidiu que não iria pagar para ver.

Duas semanas depois, os russos informaram que havia falhado a tentativa de explodir uma das nuvens com uma ogiva nuclear. Um míssil lançado pelos americanos teve a mesma sorte.

Lá no alto, algo ria silenciosamente das principais potências da Terra.

- [27-10-2019]