ABDUÇÃO PERIGOSA

I - Surpresa no caminho

Ela foi encontrada numa quinta-feira escura e fria de novembro, na curva depois da Fazenda Palmer. Os faróis da caminhonete passaram sobre o corpo pálido como lâminas varredoras assim que o Sr. Robinson conduziu o automóvel para a direita. O reflexo das luzes no corpo magro gerou estranho brilho que atraiu a atenção do casal dentro do veículo. Preocupados como eram, decidiram parar e descobrir o que seria aquilo abandonado ali.

A um metro de distância, perceberam que era uma jovem adolescente, quinze ou dezessete anos de idade, pouco mais, pouco menos, Totalmente despida, tremendo naquela estrada vazia.

A srª Robinson buscou dois cobertores no carro, usados para se protegerem sempre que saíam à noite. Agasalharam bem a jovem, dispostos a buscar ajuda no hospital próximo, mas a garota, frágil e indefesa, sendo carregada pelo sr. Robinson para a caminhonete, abriu os olhos e pareceu dizer num sussurro:

- Hospital... não... por favor... minha mala – e desmaiou novamente.

“John, precisamos levá-la ao médico, ela não está em condições de decidir, sabe-se lá o que aconteceu”, ponderou a srª Ellen Robinson para seu marido.

Porém, algo no tom de voz da menina tocou profundamente John.

“Querida, ela não está sangrando, não parece estar com dor nem tem ossos quebrados, vamos levá-la para casa e amanhã, vamos ao hospital, o que acha?”, disse ele com a decisão tomada.

No trajeto para o sítio onde moravam e com o aquecedor do carro ligado, notaram que o corpo inerte da jovem relaxava sobre o banco traseiro. Sua pequena bagagem, espécie de baú, foi posta sob o assento do passageiro. Dormia em sono profundo e continuou assim, mesmo quando novamente carregada por John e colocada no grande sofá marrom na sala de estar, de frente à lareira já acesa. Antes de irem dormir, o casal olhou para sua hóspede.

“Uma linda criança, John. Ela parece ter a idade da nossa Anne quando...”, Ellen não conseguiu terminar a frase e foi abraçada pelo marido. “Ora, mulher, não pense nisso. Ela é uma jovem bonita mesmo e precisa descansar, amanhã saberemos mais”, disse consolando a ambos; “Quem sabe até nos diga seu nome”, falou tentando tirar um sorriso da esposa.

Deixaram roupas na mesinha perto do sofá que servia de cama e iniciaram a subida dos primeiros degraus em direção ao andar superior quando ouviram uma voz calma ecoar em seus ouvidos:

- Obrigada, John e Ellen. Meu nome é Trisha.

Voltaram de imediato à sala, mas a moça já dormia novamente.

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II - ELLEN, JOHN e ANNE

Quando finalmente Ellen se percebeu grávida, não contou imediatamente a John. Ele também queria ser pai, mas Ellen sonhava muito mais em ser mãe. Durante uma semana viajou sozinha com a desculpa de visitar os pais no estado vizinho. Na verdade, hospedou-se num chalé rústico à beira do lago Fourwaters.

Passou os dias embalando seu “bebê” ainda na barriga. “Estou criando um sol dentro de mim”, ela dizia para si. Caminhava em torno do lago e imaginava sua cria pulando na água, brincando e correndo. A sensação de ser uma deusa a invadia completamente.

Na última noite antes de voltar para a realidade, Ellen observava as estrelas da varanda do chalé. O céu estava muito claro, como se quisesse se exibir em suas luzes. E a jovem mãe prometeu ser feliz.

John vibrou de alegria ao saber da notícia. Abraçou Ellen como se fosse o mais raro dos seres, pois havia se tornado um vaso sagrado.

Ela nasceu à noite, depois de um exaustivo trabalho de parto. Ellen mostrou toda sua valentia e determinação. John não a deixou em nenhum momento. O choro da criança foi o bálsamo para as dores e horas de angústia.

Infância normal e feliz. Freqüentes viagens com sua mãe até o lago Fourwaters, sempre sozinhas. “Era um segredo da mamãe”, ela pensava. Anne desenvolveu-se precocemente e sua inteligência já era comentário comum entre todos que a conheciam.

Numa noite dessas junto ao lago, enquanto sua mãe foi buscar outro cobertor, Anne notou uma luz diferente que brilhava pouco mais adiante de onde estavam. Na inocência dos seus quinze anos, a jovem pegou a lanterna e, sem dizer nada, foi verificar.

As semanas seguintes foram as piores da vida de Ellen e John. A mídia nacional invadiu tudo no rastro da polícia que investigava o desaparecimento da jovem. Teorias das mais extraordinárias foram levantadas, mas todas terminavam sem resposta porque não havia corpo, não havia pistas, não havia Anne em nenhum local.

Ellen foi acusada das mais graves maneiras que uma mãe poderia ser.

John ficou surpreso com o esconderijo secreto da esposa e filha, mas nunca duvidou da inocência da mulher. O tempo foi apagando a memória do evento e a juventude do casal.

Trinta anos depois encontraram Trisha.

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III - TRISHA

Ela acordou antes de todos. Examinou-se atentamente no espelho enorme situado ao lado da porta principal.“Nenhum dano grave”, ela pensou, “a transformação foi completa”. Vestiu as roupas deixadas pelo casal, e sentou-se esperando que eles viessem ter com ela. Trisha pensava nas últimas horas de sua vida.

- É necessário que alguém vá e só você pode ir – informou seu oficial superior sem abrir espaço para discussão.

- As dificuldades do transporte são imensas, o senhor sabe – Trisha arriscou dizer.

- Nada que algumas horas de repouso não resolvam – ele afirmou tentando sorrir, pois ninguém sabia ao certo quais seriam as reais consequências – se não houver nenhum complicador, claro.

- Senhor, essa é a única solução? – o coração dela pulsava com a adrenalina da missão, mas sua mente racional alertava para o custo pessoal.

- Se não fizermos isso hoje, não haverá amanhã, major Trisha.

Era uma honra cumprir essa tarefa e ela o sabia. Também estava ciente de que não precisavam da permissão dela, bastava colocá-la em processamento e tudo o mais seria automático até que acordasse naquele lugar distante no caminho dos seus alvos. Entretanto, deram-lhe o privilégio de ser notificada e assim tudo se faria da melhor maneira possível para o bem de todos, inclusive de sua família e amigos. Todo o seu mundo seria beneficiado.

- Se assim o é, estou pronta. Melhor ir agora e rápido – ela respondeu com convicção para contentamento da pequena assembléia reunida unicamente para esse fim: testemunhar o sacrifício.

A composição orgânica de Trisha era o fator que permitiria o cumprimento da missão. Dentre milhões de testes, ela, apenas ela, resistiria às variações e pressões às quais seria submetida.

Trisha era a chave.

Antes de entrar no compartimento que a deixaria no local e hora exatos, foi despida e aspergida por jatos de um líquido precipitador, era o que se presumia. Olhou uma última vez para o céu extremamente azul que aparecia pela abóbada gigantesca da construção e entrou no veículo que a levaria para sempre.

Isso foi há pouco mais de um dia e agora ela estava sentada na sala de estar dos Robinson, aguardando o próximo passo.

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IV - A CONVERSA

John e Ellen se surpreenderam ao encontrar sua hóspede tão bem disposta e corada. Nada dizia que a moça ali na sala estava em condição tão precária há pouco tempo.

- Bom dia... Trisha, não é? – adiantou-se Ellen sendo simpática.

- Sim, Ellen, meu nome é Trisha. É um prazer conhecê-la e ao senhor, John – ela respondeu polidamente.

Atordoados pelo acontecimento, não se preocuparam na vez anterior quando a moça os chamou pelo nome, mas hoje a situação havia mudado e John possuía perguntas. Muitas perguntas.

- Trisha, é muito bom ver que você está bem, mas precisamos saber várias coisas, você entende? – ele disse com muita calma, ainda desconfiado de tudo, naturalmente – há outras, mas a primeira que me vem à mente é como você sabe nossos nomes?

Trisha os observava com estranho contentamento. Nunca conhecera pessoas como eles, a não ser nos seus livros de ciências, geografia e história. Quem diria que seriam tão amigáveis e aparentemente bondosos?

Durante muito tempo, ela foi ensinada que esses Homens eram intrinsecamente desprezíveis e os eventos que culminaram com sua vinda para cá só provavam isso, mas estar diante do casal, realmente preocupados com ela e seu bem estar, abalava essas convicções.

- Há muito para contar, John e Ellen. Algumas coisas vocês acreditarão, outras não – Trisha iniciou – mas adianto que tudo será provado no seu devido tempo, aliás, o tempo é a chave.

“Será que ela perdeu o juízo, coitada?”, pensou Ellen após a breve resposta.

- Trisha, estamos ouvindo. Você está bem mesmo? Não acha que precisa de um médico – disse John em sua praticidade.

- Vamos tomar o café da manhã e você nos conta o que quiser – atalhou Ellen, ansiosa em dar seguimento na rotina que tanto lhe agradava.

- Não preciso de médico e infelizmente não há tempo para comermos, preciso dizer imediatamente do que se trata ou será tudo em vão – Trisha falou com autoridade.

John, bastante curioso, sentou-se junto com a esposa no sofá em frente à visitante e pediu que ela iniciasse então, ao que Trisha aconselhou que não fosse interrompida, pois as dúvidas seriam tratadas depois. Com um aceno de concordância do casal, a garota principiou sua tarefa.

“Como já sabem, meu nome é Trisha, Trisha Wagnor, major sênior das Forças Armadas e tenho 54 anos...”

- Pare, garota – interrompeu John, contrariando o combinado – se acha que vai nos fazer de palhaços você está enganada, nós ajudamos porque estava nua na estrada e é só, não queremos fazer parte de nenhum teatro – ele estava de pé – você tem no máximo dezessete anos, menina.

- Eu disse que as dúvidas seriam tratadas depois, John, por favor, confiem em mim – ela falou de forma calma – e que mal poderá haver em me ouvirem?

- John, deixe-a falar, gosto de histórias – disse Ellen.

- Está bem, mas não somos caipiras tontos, entendeu, Trisha?

- Sim, John. Obrigada, Ellen, vou continuar ...

“Tenho 54 anos e fui enviada por meus superiores para tentar evitar o caos que toma conta do meu mundo. Se minha missão falhar, meu planeta será destruído em poucas horas.”

Ellen segurou o marido para que ele não se levantasse de novo, o que motivou novo sorriso de agradecimento de Trisha.

“Nossa raça descobriu a viagem interplanetária há muito tempo e desde então visitamos planetas vizinhos buscando informações sobre tudo: ambiente, habitantes, desenvolvimento... tudo. Em muitos desses planetas decidimos capturar alguns dos nativos para que pudéssemos absorver mais sobre sua composição e pensamentos. Sei que não é algo bonito, mas a ciência estava acima de nós e tínhamos como desculpa a intenção de usar o que aprendêssemos para ajudar os próprios nativos.

Em muitas das atmosferas desses planetas a existência de nossa raça sem nossos equipamentos era e é inviável, por isso não havia como fazer contato ou mesmo enviar alguém para estudar o comportamento deles estando camuflado ou inserido naquela sociedade.

Dada a uma rara conjunção de fatores orgânicos e estruturais do meu corpo, fui a única em todo o meu planeta a ser capaz de respirar o mesmo que vocês respiram normalmente depois de uma profunda alteração genética e de forma, preservando a mente.”

A narrativa de Trisha já havia contagiado o casal que escutavam mudos e atentos.

“ Por isso estou aqui falando com vocês agora. O interessante é que uma vez deixada no seu solo, meu organismo se modificou como era esperado, mas também se rejuvenesceu, por isso aparento esta outra idade que não é a minha. Encaro como um bônus-surpresa.”

Trisha riu discretamente sendo acompanhada por Ellen.

“Pois bem, vocês devem querer saber de que raios estou falando. Vou adiantar muito, até porque se der certo nosso plano, teremos muito tempo para isso depois.

Peço que vocês continuem bastante abertos e não me interrompam porque a parte difícil vem agora.”

O dia que havia começado claro se escurecia graças às nuvens de chuva que se aproximavam. Um vento frio invadiu a sala pelas grandes janelas abertas. John incentivou com um gesto a moça que os olhou firmemente e prosseguiu lentamente:

“Há trinta anos, Ellen e John, sua filha Anne desapareceu.”

À menção do seu pior pesadelo, o casal se levantou de um salto sentindo-se entre assustado e ofendido. Trisha levantou a mão, sem se perturbar, como a pedir paciência. Eles se abraçaram e se sentaram para ouvir. Havia uma força naquela jovem que não conseguiam explicar.

“Infelizmente, Anne foi seqüestrada por uma de nossas naves de reconhecimento à beira do lago Fourwaters. Li e reli o relatório dessa campanha várias vezes. Temos fotos do dia e de antes desse dia, Ellen, quando vocês visitavam o lago sozinhas. Investigamos sua filha e como ela apresentava um elemento de inteligência incomum, nossa atenção foi chamada.”

- Onde está Anne? – gritou John com os olhos marejados – não brinque assim conosco, nada lhe fizemos, não a conhecemos, moça, não faça isso – implorou.

Ellen chorava silenciosamente. Em sua mente a frase de Trisha perdurava: “Temos fotos do dia e de antes, Ellen, quando vocês visitavam o lago, sozinhas.” E isso a enchia de culpa. Por que ela precisava levar sua filha para aquele lugar isolado?

- Eu expus minha filha a vocês, patifes – Ellen pronunciou com dor.

- Não Ellen, não se torture. Nós encontraríamos Anne de qualquer maneira – Trisha falou sentindo a dor da outra mãe – Se não fosse no lago, seria em outro lugar – ela mentiu, pois sabia que aquela localização foi o início da pesquisa, sabia que ainda mesmo quando Anne era só um embrião na barriga de Ellen, foi sua ida ao lago sozinha que despertou a curiosidade de seus colegas, mas não precisava dizer isso agora, já estava feito.

- Onde está Anne? – repetiu John.

- Chegarei lá, apenas me escutem – pediu.

Sem saber o que fazer e estando vulneráveis naquela imensidão vazia, calaram-se.

“ Anne foi levada e muito bem tratada, preciso dizer. Não lhe fizemos nenhum mal, aliás, a nenhum daqueles a quem buscamos, muitos são devolvidos.

Inicialmente, sua filha se recusou a participar de nossa pesquisa, o que era natural que o fizesse. Mas insistimos, mostramos nosso mundo e conquistas, nosso desenvolvimento e ativa como era, Anne foi seduzida por uma força incontrolável: a necessidade de saber. Ela então se conformou e se deixou ser conduzida. Nunca tivemos alguém como ela. Aprendia por instinto, era o que se ouvia dizer e o que está registrado na história. Sua velocidade era incrível e sua mente foi acompanhada pelos Notáveis. Um gênio.

Contra nós, sou obrigada a dizer que mentimos para Anne. Depois que ela já estava ambientada, desejou voltar à sua terra e rever vocês, mas a convencemos que as mudanças no seu corpo para que sobrevivesse em nossa atmosfera a impedia de voltar e dissemos ainda que apagamos a memória de vocês. Não possuindo acesso às nossas naves de viagem, por fim ela acreditou e até agradeceu pelo não sofrimento.

Mas algo se rompeu e, hoje sabemos, que a partir de então, tudo que Anne aprendia, estudava, perguntava, colecionava, pesquisava, tinha apenas um único e especial objetivo: a destruição de nossa raça.”

- Essa é minha filha – falou John com orgulho.

“Só descobrimos quando era tarde demais. Anne desenvolveu um sistema eletrônico que invadiu nosso controle de armas em massa e o programou para explodir em algumas horas. Seremos uma grande onda de luz no espaço. Muitas naves de salvamento já saíram do planeta, mas estão condenadas a viverem apenas enquanto durarem seus estoques de alimento e ar, visto que não podem pousar em local nenhum conhecido.”

Estáticos, Ellen e John nem sabiam como reagir diante disso. Então a mente pragmática de John trabalhou:

- Mas Anne também morrerá, eu suponho. Vocês não podiam forçá-la a anular o tal sistema? – ele falou sem querer pensar no que se apresentava como resposta.

Trisha não podia enganá-los nesse ponto se quisesse a cooperação deles.

- John e Ellen, Anne se matou na manhã de ontem, justamente para impedir isso.

Um grande soco atingiu o estômago do casal. Eles nunca haviam pensado na filha como se estivesse morta, apenas perdida. Isso lhes retirou toda a força, qualquer resistência.

Conectada nessa tensão, Trisha sentiu que o momento crucial havia chegado.

- Por isso vim, há uma chance de reverter tudo, salvar meu mundo e a filha de vocês – ela disse com a boca seca pela primeira vez. Suas mãos tremiam diante da enormidade do assunto.

Sem nem pensar nas conseqüências e mesmo sem entender direito, os pais de Anne falaram quase juntos:

- Faremos qualquer coisa, Trisha, qualquer coisa que você precise.

A visitante alienígena arriscou dizer num sussurro: “Eu preciso matar vocês.”

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V - O ABSURDO

Ao ouvir a sentença na voz tranqüila de Trisha, John levantou-se rápido, foi ao seu quarto e voltou com uma arma em punho apontando para a estranha.

- John – gritou sua mulher.

- É disso que se trata, Trisha? – John perguntou sem esperar resposta –

você é um daqueles psicopatas cultuadores das trevas, por um minuto você nos enganou – ele disse – talvez sua idade parecida com a de nossa filha tenha ajudado. O golpe foi muito bem pensado, vocês pesquisaram sobre nós, mas não, minha jovem, isso não vai acontecer, fora da minha casa ou serei eu a lhe matar – ele estava totalmente descontrolado.

- Calma, John – reforçou Ellen.

- Nada de calma, essa criatura mexe com nossas dores, cria uma história maluca e diz que precisa nos matar ? Você quer que eu me acalme?

Trisha Wagnor observava com atenção o contínuo movimento de John e da arma. Seria muito fácil para ela tomar-lhe o objeto e subjugá-lo. Suas técnicas de luta já faziam parte de sua rotina há tantos anos quantos se lembrava. Mas Trisha não queria isso. Precisava convencê-los e não agredi-los.

- Não há necessidade disso, John – ela disse.

- Não me chame assim mais, não lhe dei essa liberdade.

- Como queira, sr. Robinson, apenas acalme-se, está bem? Não sou ameaça a vocês. Se não concordarem com que tenho exposto e o restante de tudo que ainda falta dizer, vou-me embora – novamente sua voz denotava resolução - irei arrasada, porque meu mundo, minha família, meus amigos, meus filhos, estarão condenados e eu presa aqui vivendo minha dor todos os dias, seria melhor mesmo que me exterminasse.

John ainda não estava disposto a baixar a arma, mas olhando para as mulheres à sua frente, uma jovem da idade de sua filha e sua esposa tão quieta, parou para ouvir a continuação daquela história insana.

- Então continue, Trisha, mas se eu notar algum barulho lá fora, talvez de seus comparsas ou se você fizer um ato suspeito, atirarei em seu peito ou na cabeça, não duvide disso, entendeu ?

- Entendi sim, sr. Robinson e agradeço. Agora enxergo melhor a natureza de Anne, depois de conhecer vocês.

O casal estava tenso, mas se acomodaram novamente. Trisha pediu um pouco de água. Assim que havia certa normalidade, ela continuou.

“O que eu disse é verdade, a mais pura verdade. Preciso matar vocês e por quê? Porque é o único modo de conseguir voltar no tempo utilizando a energia vital de ambos para isso.”

Trisha fez uma pausa para que as implicações fossem absorvidas antes de dar sequência em seu relato.

“Descobrimos que podemos viajar ao passado e visitar certos pontos da vida de outra pessoa desde que a energia anímica dos pais dessa pessoa seja o canal condutor. É trágico, pois exige medidas extremas. Fizemos experimentos com pais de alguns dos nossos conterrâneos que estavam desenganados pela medicina. Sempre deu certo. Os pontos de retorno são aqueles considerados traumatizantes para os genitores.

Vejam a dificuldade em nós estávamos: só um de nós, eu, teria condições de vir ao seu planeta, porque somente meu corpo suportaria a transformação para a forma do corpo de vocês e depois teria de convencê-los a se deixarem matar para salvar um planeta que vocês não conhecem em nome da filha que foi raptada por nós. Eu atiraria em mim, sr. Robinson, se estivesse no seu lugar.”

Apesar de estar sorrindo, Trisha tinha total consciência da verdade dita. Ela teria puxado o gatilho sem hesitar.

John e Ellen pensavam somente em Anne. A aparente honestidade de Trisha, o desespero das suas vidas nos últimos anos, minavam suas emoções.

Ellen arriscou falar:

- Se nós concordamos e você voltar, como isso impediria que Anne explodisse seu terrível mundo?

A moça sentindo-se confortável nas roupas que certamente seriam as de Anne e ficaram guardadas por tantos anos mostrando o amor daqueles pais, pensou em omitir sua missão, tinha ordens precisas, mas decidiu que ela era a única responsável agora e suas ações não poderiam ser questionadas por ninguém. Se falhasse, todos morreriam, se tivesse êxito, o futuro seria alterado e não se lembrariam dela nessa função crucial. Então resolveu falar como uma mãe para outra mãe:

- Ellen, minhas ordens eram de, se os convencesse, voltar e eliminar Anne. Tinha orientação para dizer o que fosse preciso, mentir dizendo que salvaria sua filha para vocês, se isso os fizesse acreditar em mim, e eu disse mesmo. Mas depois, tendo retornado no tempo, minha principal tarefa seria destruir Anne.

John e Ellen ficaram sem saber como reagir a essa informação que vinha complicar ainda mais as coisas.

- Mas isso é ... – o homem iniciou a dizer, mas foi calado por Trisha.

- Espere, deixe-me terminar. Essa era a minha tarefa, minha missão. Mas nessas poucas horas em que nos conhecemos, decidi que não posso fazer isso. Se vocês acreditarem em mim, eu retornarei e salvarei Anne impedindo que seja abduzida, desse modo ela não será ameaça e vocês terão suas vidas alteradas, claro que não se lembrarão de nada disso.

- Mas como vamos acreditar? Aliás, como vamos acreditar em qualquer coisa que você disse até agora? Você não espera realmente que nos deixemos matar apenas por sua boa conversa e educação.

- Não, nunca esperei. Por isso um pequeno baú com as provas necessárias foi deixado comigo. Onde ele está, srª. Robinson?

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VI - As PROVAS

Enquanto Ellen foi buscar o baú resgatado junto com a moça, John ficou vigiando.

Trisha olhava o relógio na parede sempre que podia. Em horas, a explosão extinguiria bilhões de seres, um evento tão catastrófico que a sutil trama espaço-tempo não permitiria mais que fosse alterada, por isso havia a necessidade da viagem antes que a destruição fosse um fato.

O pequeno baú foi entregue a Trisha.

- Abra devagar, menina – alertou John – não quero surpresas.

Ela fez conforme orientado e o baú revelou seu conteúdo: muitas fotografias de Anne.

Elas praticamente contavam a evolução da menina no planeta estranho, mas antes havia fotos de Ellen com a filha à beira do lago em diversos momentos e datas diferentes. Existiam também retratos captados da rotina de Anne indo ao colégio, passeando distraída nas ruas. Essas capturas de imagem sempre vinham de um ângulo superior ou diagonal de modo que não poderia existir dúvidas de que o autor delas estava numa plataforma bastante e anormalmente elevada para os padrões tecnológicos da época.

Os pais de Anne viram esses primeiros documentos passando de uma mão para a mão do outro e depois retornando para reviver o momento.

- Minha filhinha, que saudade – disse John.

- Lembra dessa roupa, meu bem, você deu como presente de aniversário e ela disse que nunca mais deixaria de usar essa cor – Ellen completava – nesse dia ela caiu na escola e se machucou, mas veio embora sem chorar.

As fotos no lago deixaram Anne totalmente muda. Lágrimas caíam sobre elas e John a abraçou ternamente.

- Como vocês puderam fazer isso com a gente? – diziam baixinho.

Trisha passou-lhes as fotografias depois da abdução. Os primeiros dias, as salas de aula, a adaptação aos equipamentos de respiração. Anne crescia e se tornava adulta nas mãos dos seus pais, depois de trinta anos.

Quando não restava mais nenhuma imagem a ser mostrada, houve apenas o silêncio e a lembrança de que Anne estava morta.

...

- Trisha, você nos dá licença um instante, precisamos de um minuto sozinhos – pediu John.

- Claro, estarei lá fora. Quando estiverem prontos me avisem.

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VII - A DECISÃO

A visitante foi para a varanda da casa e sentou-se na cadeira de balanço. Para Trisha, tudo também era muito estranho e doloroso. Por que ela não poderia simplesmente deixar de existir, abrir mão de sua responsabilidade e ser engolida pelo vácuo? De onde viera essa capacidade do seu corpo de se adaptar aos severos processos regenerativos a que foi exposta? De que adianta perguntar-se isso?

- Trisha? – ela ouviu chamando após o que pareceram horas.

Ao entrar na sala onde estava o casal, a primeira coisa que ela notou foi que a arma não estava mais à vista.

- Sente-se, minha jovem – John convidou.

Assim que ela se sentou, Ellen buscou comida e suco oferecendo aos dois e se servindo em seguida.

Comeram em silêncio.

Depois da louça ter sido retirada e lavada por Ellen, que voltou para seu lugar junto ao marido, este perguntou:

- Major Trisha Wagnor, a senhora nos dá sua palavra que salvará nossa filha do seqüestro e fará tudo para evitar essa dupla tragédia?

Ela foi pega de surpresa pela convicção na voz de John e o olhar gentil

de Ellen. Nem quando participou de sua primeira guerra espacial e ordenou executar centenas de inimigos, Trisha sentiu tanto medo.

- Sim, sr e srª Robinson, dou minha palavra de honra que tentarei salvar Anne desse destino.

- A senhora entende que mesmo a salvando do primeiro rapto, poderão existir outras tentativas e promete continuar agindo para que não sejam realizados a contento?

Trisha não havia pensado nisso. É claro que outras tentativas seriam feitas. Ela conhecia as equipes de extração. Eram obstinados e competentes. Esse detalhe muito bem levantado por John sequer havia passado pela cabeça de nenhum dos comandantes.

- Eu prometo, farei de tudo para protegê-la sempre – ela disse por fim.

- Nesse caso, confiamos nossas vidas à senhora – disse John buscando a mão de sua esposa, Ellen.

Dito isso, todos se puseram de pé e se abraçaram.

“Vocês nada sentirão, sr. Robinson”, “Pode me chamar de John, Trisha”.

A major tirou de um compartimento do baú um pequeno aparelho que possuía três conexões e duas pílulas brancas e esféricas, colocou a pequena arca no meio da sala, depois de arrastar os móveis abrindo espaço e então pressionou a tampa do objeto, afastando-se em seguida.

Ouviram-se vários cliques de engrenagens se movimentando e o baú começou a se expandir formando uma cabana metálica com espaço para três pessoas deitadas em seu interior. Dentro da cabana, aparelhos e medidores de variadas formas.

- A máquina do tempo, enfim – disse John.

O casal entrou na “cabana” e se deitou nos locais indicados por Trisha.

Conexões foram implantadas sobre a testa e nuca do casal que estava de mãos entrelaçadas. Trisha ligou outros instrumentos, conectou o último elemento em sua própria cabeça, passou uma pílula para John, outra para Ellen.

- Engulam ao mesmo tempo, sem o consentimento de vocês não funciona – disse Trisha – foi um prazer e uma honra conhecê-los, peço desculpas pela dor que causamos.

- Eu te amo, Ellen.

- Eu te amo, John.

- Cuide de nossa filha, Trisha – falou John.

- Eu juro – confirmou a major enquanto uma solitária gota caiu de seu olho.

O casal, pais de Anne, segurando juntos uma foto da filha, levaram suas pílulas à boca, que se dissolveram instantaneamente e os encaminhou para o sono eterno.

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VIII - A MISSÃO

Quase imediatamente Trisha sentiu a descarga anímica das almas ao seu lado invadir seu corpo jogando-o num turbilhão de desmaterialização aparentemente caótico.

Ela teve acesso às lembranças de John e Allen e percorria por elas como se estivesse em uma sala de exibições. Sabia, pelo treinamento recebido, que as passagens que permitiriam sua materialização no passado estariam muito mais brilhantes e que teria poucos segundos para decidir se “desceria” naquele instante levando seu corpo junto e surgindo fisicamente no quadro do passado.

- Lembre-se, major, sua missão é eliminar Anne, a qualquer custo – rememorou suas ordens.

“Não, eu prometi, nós fomos culpados disso”, disse para si.

Trisha temeu entrar em alucinação e então viu o momento do nascimento de Anne. Observou o esforço de Ellen e John. Se ela retornasse agora poderia matar facilmente aquele bebezinho e tudo estaria resolvido, depois teria trinta segundos para reinstalar a conexão em sua testa antes que ela desaparecesse voltando desse modo à cabana junto aos corpos de John e Ellen. Se não conectasse o instrumento, ficaria presa naquele tempo. O momento na tela ainda estava brilhante, era realmente um dos pontos de retorno no tempo.

“Haveria outro?”, ela pensava. Se parasse agora, teria que matar a pequena Anne, não poderia esperar 15 anos para salvá-la do seqüestro, aliás, em uma hora o planeta no futuro seria dizimado e nesse caso o passado alterado não teria influência, pois a magnitude do evento já estaria cristalizada. Ela cumpriu sua promessa.

Aquela imagem passou e novas apareceram vindas das memórias dos pais de Anne.

Estava ficando perigosamente perto da data da abdução e nenhum outro quadro brilhante aparecia. Trisha começou a temer pelo fracasso da missão. “Deveria ter aproveitado a primeira chance”, ela começava a se arrepender.

De repente, uma cena se imobilizou naquele calidoscópio. Ellen estava no chalé buscando um cobertor quando passou pela janela que dava para o local onde estava há pouco com a filha e viu que Anne começava a andar rumo à mata que cercava o lago. Uma lanterna em sua mão. Trisha sentiu uma dor incrível em si mesma, a dor que Ellen sentiu premonitoriamente gritando para a filha: - Anne, não vá a lugar nenhum. Pare!

Mas Anne não ouvia e continuava.

Óbvio que era ali o ponto de retorno necessário, mas não havia o brilho característico que marcava esses instantes no tempo para que permitissem sua materialização.

Trisha compreendeu. Ellen não sabia ainda que esse seria o último momento em que veria sua filha viva. Tudo estava perdido. Sem essa janela no tempo, de nada adiantou o trabalho.

- Não desista, Trisha – uma voz, a voz de Ellen se fez presente – você nos disse que é mãe e mães podem qualquer coisa.

Ellen estava com ela na viagem. “Mães podem qualquer coisa”.

Acreditando nisso, pensando nos próprios filhos e em tudo que estava sendo arriscado, Trisha puxou a conexão ou sensação de conexão em sua testa, a senha para que seu corpo fosse materializado. Se o ponto não existisse, ela morreria.

Durante um segundo enorme, nada aconteceu. De repente a imagem principiou a brilhar e ela soube que conseguira forçar a barreira criando um ponto de retorno.

- Proteja nossa filha, Trisha – despediu-se Ellen.

O corpo de Trisha apareceu na varanda do chalé. Ela estava tonta e desorientada.

- Não vá a lugar algum – ouviu a voz de Ellen gritando para a filha – ela havia conseguido, estava no mesmo plano físico do passado.

Levantou os olhos bem a tempo de ver no horizonte, acima da linha da visão da mãe de Anne, que estava dentro do chalé, a forma da nave de seu planeta e viu Anne ir em direção à luz jogada no chão como uma isca.

Não havia tempo. Forçou seu corpo e começou a correr atrás de Anne, gritando a toda para que parasse.

Anne nada ouvia, hipnotizada pelo facho que via e quase a forçava a avançar. Ela estava muito próxima do círculo de luz formado no chão, já entrando naquele espaço quando algo bateu contra ela, derrubando-a e machucando seu braço no contato imediato contra o solo.

A luz se apagou no mesmo instante. Trisha ainda viu a nave se afastar silenciosamente entre a escuridão. Ela salvara seu mundo, pelo menos por agora.

Anne estava chorando. Ellen vinha correndo e quis saber o que estava acontecendo. Trisha, rindo e chorando, disse que fugia de uma espécie de luz que a perseguia quando se encontrou violentamente com a menina.

- É verdade, mamãe. Eu também vi a luz – disse Anne, confirmando indiretamente a desculpa da major Trisha.

- Que história esquisita, mas vamos cuidar desse braço, filhinha – Ellen afirmou olhando para Trisha que estava muito quieta agora – e você vem com a gente, mocinha, vamos procurar seus pais.

- Não tenho pais, senhora – Trisha respondeu baixinho – vivo só no mundo.

- Isso não está certo, venha para a gente conversar melhor longe dessa escuridão.

As três foram para o chalé.

No decorrer do tempo, os pais de Anne praticamente adotaram Trisha e as moças se tornaram muito amigas.

IX – O PERIGO RONDA

Um dia, Anne vendo Trisha com o olhar distante no céu perguntou de onde ela nascera:

- Venho de um planeta muito bonito, todo azul, a gente chama de Terra.

Aqui vocês dariam um nome horrível para ele. Vocês e suas cabeçorras horrorosas.

- Nossas cabeçorras, Trisha, a sua é até maior que a minha – Anne riu e emendou – pois lhe prometo, que se um dia descobrir um planeta azul, como a grande astrônoma que serei, vou dar o nome “Terra” em sua homenagem.

Ao longe, no espaço, uma foto foi registrada desse momento. O áudio da conversa mencionando o planeta Terra foi enviado ao Centro Superior de Ordens. Seria coincidência, depois de tanta vigilância, inclusive um rapto frustrado, aqueles seres alienígenas citarem o nome do local de origem das naves?

A atenção da equipe de extração foi elevada ao nível máximo.

Certamente isso repercutiria nas altas esferas de comando da NASA INTERGALÁTICA e a missão sobre aquelas jovens seria acelerada.

FIM.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 28/10/2019
Reeditado em 06/09/2020
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