EXTINÇÃO

 

    4 dias

    O comunicador via satélite bipou em cima do painel do carro. Agnes, apreensiva, tomou o aparelho e ligou o receptor.
    — Mãe?
    — Sim, meu filho. Pode falar.
    — Como estão as coisas aí embaixo?
   — Tristes demais. Um verdadeiro caos. Como já era esperado, muita gente está colocando seus ressentimentos para fora de maneira descontrolada. Estão inconformados.
    — Vocês estão bem? Foram abordados por algum lunático?
   — Não se preocupe conosco. Eu e seu pai estamos subindo à serra, vamos passar nossos últimos momentos juntos em nossa velha casa na montanha. Infelizmente, a cidade não é mais segura. Não vale a pena morrer com tranquilidade por lá.
   O comunicador ficou em silêncio por um momento. O ruído estático de fundo parecia transmitir a desolação pesada do filho ali dentro do carro, embora ele estivesse a milhares de quilômetros distante da Terra, seguro dentro da Estação Espacial Internacional.
   — Eu... juro... mãe, pai... juro, se pudesse eu trocaria de lugar com vocês.
   Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto de Agnes. Joshua retirou a mão direita do volante e abraçou a mulher, apertando-lhe os ombros em um rápido instante sem tirar os olhos da estrada. Voltou o rosto para o aparelho como se Martim estivesse no banco do carona.
    — Não pense mais nisso, filho. Você é novo. Tem a vida toda pela frente. Nós já tivemos a nossa oportunidade de contemplar a vida, de viver este planeta.
    — Não fique triste, querido. Pense nos benefícios de estar aí em cima como um dos escolhidos. Valorize esta chance.
   — Eu sei, mãe, mas é muito difícil não poder fazer nada. A sensação de impotência aqui é muito grande.
    — Meu filho, é melhor você não entrar mais em contato conosco. Será muito doloroso pra nós, e pra você também, quando chegarmos ao fim.
   — Não posso! Não posso! Preciso acompanhar, preciso conversar, preciso ter vocês comigo, mesmo de longe, até tudo terminar. Eu queria saber se... se...
    Joshua sabia bem o que o filho queria perguntar, porém não tinha coragem. 
   — Martim, escute bem, não vamos esperar. Eu e sua mãe já decidimos. Nós iremos partir desta vida antes das doze horas para o primeiro impacto.
    — Sei...
    — E não se preocupe. Fique tranquilo. Já estamos preparados. Não vamos sofrer, isso eu lhe garanto.
    — Entendo. O que posso dizer? Sinto muito... eu amos vocês!
   Joshua apertou o volante para não deixar transparecer a voz embargada, enquanto Agnes pressionava as mãos contra a boca para abafar os soluços do choro incontido. Eles não queriam, de modo algum, empurrar ainda mais sofrimento ao filho.
    — Nós também te amamos – disseram juntos.

 

    3 dias

    Agnes olhou para o marido de costas. A aragem fria da noite revirava as folhas das copas das árvores em um ritmo acolhedor, de paz. Joshua estava próximo do precipício. Observava toda a paisagem lá embaixo de um verde acinzentado pela luz da lua. O radiozinho de pilha, junto dele no chão, irradiava uma música suave, gostosa de ouvir.
    Ela deixou o alpendre da casa e foi para junto do companheiro. Tocou de leve a mão em seu braço. Ele a envolveu de lado, puxando-a para si, sem deixar de admirar a paisagem. Agnes encostou a cabeça no seu ombro.
    — Quanto tempo falta.
    Ele olhou para o cronômetro do relógio de pulso.
    — Exatos três dias e 8 horas.
    De onde estavam, ainda podiam ver bem ao longe no horizonte as emissões intermitentes de milhares de pontinhos brilhantes: eram as lâmpadas das casas e apartamentos, trazendo-lhes à possibilidade real de estarem, se quisessem, junto à família. No entanto, os dois tinham consciência de não conseguirem aguentar o desespero do fim se aproximando com eles.
    Agnes olhou para o céu. Custava-lhe a crer que a partir daquele lindo quadro negro salpicados de pontinhos cintilantes, do qual sempre lhe causara um fascínio enigmático, pudesse advir a morte devastadora de quase toda a humanidade. Enormes asteroides iriam colidir com a Terra dentro de poucas horas. O mundo estava condenado.
   Voltou-se para o marido. Percebeu uma lágrima escorrer-lhe do rosto.
    — Veja, querida, como este lugar é lindo, como a vida é bela. Qual o sentido de tudo isso acabar de uma hora para outra?
    Ela o abraçou mais forte. Os dois encontravam-se assim: quando um fraquejava, o outro estava ali firme para dar força, para confortar.
    — Às vezes, gostaria de ser um daqueles devotos fanáticos da religião, sabe? Eles não acreditam. Estão se reunindo em grupos na igreja todos os dias pra rezar. Alguns estão até felizes pelo arrebatamento dos justos que virá. Não estão nem aí para os asteroides. – Disse ela.
    — Fanatismo nunca foi bom pra ninguém.
    Ele ficou quieto a ruminar os pensamentos por um tempo sobre aquele assunto. Os dois abraçados começaram a se embalar lentamente de um lado para o outro ao ritmo da música. De repente, ele suspirou forte. Algo o incomodava.
    — Querida, por que ele nos abandonou?
    — Quem?
    — Deus.
    Os dois ficaram parados por um instante. Ele virou o rosto para ela, como se esperasse uma resposta. Sabia bem ser a esposa muito mais religiosa do que ele, que era quase um ateu confesso.
    — Ah, não sei. Talvez tenha se cansado de nós. Na verdade, não acredito mais nele também, se você quer saber. Como acreditar, não é?
    Outra música começou a tocar. Voltaram ao ritmo suave.
    — Jô, Martim vai ficar bem na Estação Espacial?
    — Tenho certeza absoluta de que ele ficará melhor lá em cima do que se estivesse na Terra. Isso é certo. Aqueles jovens serão as únicas sementes para se germinar por aqui depois da poeira da atmosfera se assentar.
   — É irônico, não é?  A humanidade possuir tecnologia para manter um grupo de pessoas lá em cima por uma década e, de outro lado, não dispor de recursos eficientes para deter um pedregulho gigante vagando no espaço.
    — O Consórcio Internacional dos Grandes Países bem que tentou.
    — Pois é, ao invés de pulverizar o maldito, conseguiram dividi-lo em 3 pedaços.
    Ouviram o barulho de estática vindo do alpendre.
    — Mãe, pai?
    Os dois retornaram à casa para conversar com o filho.
 

    2 dias

   Joshua, sentado na cadeira de balanço, junto ao penhasco, admirava a bela manhã de sol. Jamais havia dado tanta atenção à natureza como naqueles dias de morte anunciada. Arrependeu-se de não ter contemplado tudo aquilo mais vezes quando pôde.
    Puxou a ampola de tranquilizante para perto dos olhos. Queria conferir se estava tudo certinho. Tinha medo de perdê-la. Era para Agnes. A esposa iria dormir como um anjo quando tivesse de atirar na cabeça dela. Simples e indolor. Depois ele daria um jeito nele mesmo. Não iriam sofrer caso o impacto dos asteroides fosse muito distante.
    Estava, já há alguns minutos, pensando em quanto tempo a Terra levaria para se recuperar das colisões devastadoras. Aqueles que escapassem dos primeiros impactos teriam de conviver com as complicações indiretas como o resfriamento do planeta por causa da poeira levantada para atmosfera, os tsunamis, os buracos gigantescos na camada de ozônio, a fome, a água contaminada, os vulcões ativos, sendo estas apenas algumas das consequências, entre outras, que tornariam o ambiente hostil e quase inabitável na Terra por um bom período.
   Os dinossauros, tão fortes, tão dominadores deste mundo, há sessenta e cinco milhões de anos não conseguiram sobreviver e foram extintos por causa de um enorme meteoro. Agora, era a vez dos humanos correrem o perigo também da extinção em consequência dos efeitos colaterais das poderosas colisões sobre o ecossistema terrestre.
    Agnes ressonou, deitada em sem seu peito, sentada em seu colo. De repente, o bip do comunicador lá na cozinha atravessou o silêncio gostoso da manhã. Ela pulou alerta. Saiu correndo na direção da casa para ouvir a voz confortadora de Martim. Ele se levantou também. Não queria perder um minuto sequer na companhia da voz do filho.
 

    12 horas

    Os dois estavam cansados, suados, satisfeitos. Renderam-se ao sexo de uma maneira intensa, demorada, entregues um ao outro de modo que jamais haviam feito. Eles se beijaram e riram constrangidos como se os olhares de ambos revelassem o que estavam pensando: por que não fizemos amor assim antes? 
    — Você está pronta?
    — Sim, meu amor, estou.
    O adeus definitivo a Martim ocorrera havia quatro horas. O choro de despedida dos três fora algo muito difícil de conter, contudo não tiveram como evitar.
    Ele se levantou, abriu a cômoda ao lado e pegou a ampola de tranquilizante. Agnes jamais viu a arma escondida debaixo da cama. Joshua não era médico nem enfermeiro, mas teve muito tempo para estudar como usar de modo indolor a agulha intravenosa. Não queria dar o mínimo desconforto à esposa nos seus derradeiros momentos de vida.
    O líquido amarelo já estava dentro da seringa.
    — Você não quer dar mais uma olhada lá fora?
    — Não. Quero morrer aqui mesmo nesta cama olhando pra você.
    Ele mirou bem no fundo dos olhos dela. Não encontrou vestígios de lágrimas nem de medo. Estava pronta. Nem ele estava com os olhos marejados.
    — Tivemos uma boa vida juntos, não é?
    Ela sorriu. Estava muito linda e serena, pensou ele.
   — Você não vai querer discutir a relação agora, não é, senhor Joshua?
    Ele voltou a beijá-la com sofreguidão do mesmo modo apaixonado das primeiras vezes de namoro. Em seguida, suspirou forte, pegou a seringa. Ela estendeu o braço. Quando a agulha já estava a poucos centímetros da veia principal, a voz desesperada de Martim irrompeu o quarto.
     — Pai, pai... pelo amor de Deus pai... por favor, você ainda estão aí? Mãe, meu Deus... pai diga que ainda não estão mortos...
    Joshua largou a seringa na cômoda e pegou o comunicador. Agnes deu um pulo na cama atenta.
    — Ainda não meu filho.
    O casal ouviu o rapaz engolir a saliva. Em meio ao barulho de estática ainda puderam escutar um “graças a Deus” de alívio.
    — O que foi?
   Eles sentiram a respiração de Martim sôfrega. Uns poucos segundos de silêncio e logo ele prorrompeu em palavras repletas de pura felicidade.
    — Um milagre pai! Vocês não vão acreditar. Um milagre! A Terra está salva, pai. Estamos salvos, mãe. Vocês não vão morrer. Todo mundo vai viver. Yuuuuuppiiiiiiiiiiiiii!!! Yaaaahooooooooo!!!
    Os dois se olharam aparvalhados. Agnes num ímpeto irrefletido pegou o transmissor das mãos do marido perplexo.
  — Como assim a Terra está salva? Como? Não estamos entendendo, Martim.
    — Naves enormes, mãe! Eu vi tudo de pertinho...
    — Naves? Como assim naves?
  — Ora, estou falando de espaçonaves gigantescas de outra civilização! Não são nossas! Surgiram de repente, sabe-se lá de onde. Simplesmente apareceram. Do nada... assim! – Ouviram o filho estralar os dedos.
   O casal levou alguns segundos para assimilar a informação. Ela levantou uma sobrancelha desconfiada. Ele rolava os olhos para os lados como se buscasse respostas nos cantos do quarto. Martim apenas ria do outro lado.
   — Filho, por acaso você está falando de saltos no hiperespaço? – Joshua resistiu em jogar aquele pensamento ridículo para fora. – Tipo assim... como nos filmes de Guerra nas Estrelas?
   — Isso. Sim, sim. Isso mesmo! Elas surgiram de repente tão grandes quanto os próprios asteroides. Você precisava ver, pai, as espaçonaves extraterrestres criaram uma espécie de campo magnético invertido. Daí, simplesmente se encostaram perto das rochas e empurraram-nas, em várias direções, desviando suas trajetórias para longe do nosso planeta. Os cientistas aqui da Estação Espacial já até calcularam o novo percurso dos pedregulhos. Eles contornarão a Terra, indo em direção ao sol.

    — Filho, isso é verdade mesmo?
    — Pai, por que eu iria lhes dar falsas esperanças?
    Agnes e Joshua olharam um para o outro por mais um tempo para absorver aquela informação, porque ela mudava inteiramente a concepção do término anunciado da vida reduzida dos últimos anos. Aos poucos, o brilho dos olhos deles retornaram à vida. Apertaram-se em um abraço demorado. Enquanto Martim dava mais detalhes, o casal queria sair do quarto. Queriam ver o mundo deles vivo de novo. Correram nus para o pátio saboreando a brisa suave da noite.
    — Filho, temos de agradecer aos extraterrestres pessoalmente.
    — Isso vai ser bem difícil, pai. Assim como apareceram, depois de desviarem os asteroides, simplesmente as espaçonaves sumiram dentro do espaço sem deixar um rastro sequer. Escafederam-se por algum portal, não sabemos como.
    Agnes lançou um olhar de sobrancelhas arqueadas para o marido, e sem perder o sorriso largo do rosto.
    — Será que foi Ele?
    — Quem? Deus? Você está falando de Deus?
    Ela assentiu com os olhos a lacrimejar de felicidade, pois a fé parecia-lhe essencial à vida. Ele olhou para o céu coalhado de estrelas, mais lindo do que nunca, e voltou-se para ela.
    — Não sei se foi Deus, mas tem alguém lá em cima olhando por nós, e resolveu dar à humanidade uma nova chance de viver. 
    Os dois se beijaram em meio a sorrisos pelo filho completamente alucinado. Martim não parava de falar inebriado de felicidade a milhares de quilômetros de distância.
    Não perceberam no horizonte, por cima do cobertor pontilhado de milhares de luzes da cidade, os diminutos fogos de artifícios iluminando e colorindo ainda mais a noite, enquanto chegava até eles, oriundo do radiozinho de pilha de lá de dentro da cozinha, o eco distante da voz potente e rouca de Louis Armstrong cantando “What a Wonderful World”.


*I see trees of green,
Red roses too
I see them bloom
For me and you
And I think to myself,
What a wonderful world!




*Eu vejo árvores verdes
Rosas vermelhas também
Vejo-as florescer
Para mim e para você
E eu penso comigo mesmo
Que mundo maravilhoso!

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 06/11/2020
Reeditado em 20/09/2023
Código do texto: T7105628
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