Uma aventura singular

UMA AVENTURA SINGULAR
Miguel Carqueija

No dia fatídico em que o grande dirigível caiu em chamas sobre a Praça da Exclamação, uma grande multidão comprimiu-se em torno do cordão de isolamento que as autoridades precariamente estenderam para isolar o sinistro. Por sorte não havia falta de água nos hidrantes e os balões dos bombeiros também vieram com presteza.
Turbo Nei Manolo era um dos que buscavam manter a multidão a distância, tentando seguir a ordem de agir com firmeza e civilidade. Seu uniforme azul ostentava as divisas de tenente da Força de Manutenção da Ordem, o que em circunstâncias normais impunha respeito. Mas o caso era muito insólito e havia parentes dos vitimados no local, buscando informações.
— Não, Jackson — disse Turbo ao repórter, seu conhecido. — O acesso ainda não foi liberado, pois há perigo...
— É mesmo? Várias pessoas já passaram!
— Sim, mas estão dando trabalho! Procure ser razoável...
— Acha que há risco de explosão?
— Não, acredito que não — disse Turbo, olhando para a nuvem de fumo.
— Tenho um filho lá! — gritou uma senhora gorda que, empurrando Turbo e escapulindo de dois outros guardas, correu na direção do aeróstato sinistrado.
— Raios! Vão se atracar com ela! — queixou-se Turbo.
— Tenente, deixe-me passar. Sou enfermeira e poderei ser útil.
Turbo, surpreso, olhou para a moça que surgira à sua frente, com uma blusa verde e um chapeuzinho marrom enfeitado por uma pena artificial.
— Sim? Disse enfermeira?
— Isso. Sou Avelã Brás, pode examinar.
Turbo verificou a carteira funcional do Hospital Luz Rios e aquiesceu:
— Está bem. Vou lhe dar passagem, mas tome cuidado.
— Pode deixar.
— Deixa eu ir com ela! — exclamou Jackson. — Quem vai proteger a moça?
— Por que você acha que ela precisa...
Mas, ao erguer o cordão para permitir a passagem de Avelã, Turbo acabou deixando, sem querer, que Jackson também passasse.
— Raios! — Turbo teve vontade de amaldiçoar o repórter, mesmo sabendo que provavelmente faria a mesma coisa se estivesse em seu lugar. Resolveu correr atrás dele.
Jackson Lee e Avelã Brás tinham pernas compridas e Turbo teve que se esforçar. Ultrapassaram uma palmeira derrubada e se aproximaram dos bombeiros. Algumas vítimas estavam sendo socorridas e vários cadáveres já se espalhavam pelo chão. Era uma cena dantesca.
Nisso ouviram gritos lancinantes entre as chamas. A estrutura de magiplast segura numa armação de superalumínio rompia-se e por entre as labaredas avistavam-se rostos humanos angustiados. Encharcado pelos jatos de água, Turbo não hesitou em correr para lá. Até se espantou ligeiramente ao perceber que corriam ao seu lado; e mal se deu conta de quem eram. Havia vidas humanas que precisavam ser salvas. O agente pulou entre fasquias inflamadas e se aproximou de um homem gordo e barbado, caído em meio aos destroços fumegantes, dois olhos enormes e esbraseados que olhavam diretamente para ele e nas mãos uma estranha valise negra com botões, que o sujeito insistia em segurar com todas as forças...
Foi a ultima coisa que o agente percebeu antes da explosão.

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Acordou sentindo-se muito dolorido e com a sensação de algo molhado esfregando em sua testa. Estava deitado em alguma coisa, de barriga para cima.
— Ainda bem que acordou — disse uma conhecida voz feminina.
Turbo abriu os olhos e tentou se erguer. Era Avelã quem passava uma toalha em sua testa. E não havia nenhum sinal do incêndio.
— O que aconteceu? Onde estamos?
— Isso é o que todos nós queremos saber — respondeu uma voz cavernosa e desconhecida para Turbo.
Ele procurou se sentar, e percebeu que mais três pessoas estavam ali além de Avelã: o repórter, o homem da valise e uma garota muito magra, de cabelos longos e escuros. Mas o detalhe alarmante era que não estavam em lugar nenhum: estavam numa campina verdejante que se perdia de vista.
— O que é isso? Como viemos parar aqui?
— Turbo, não tem nenhuma explicação plausível a não ser que este sujeito aí esteja falando a verdade.
Turbo voltou-se para o homem barbado:
— Do que se trata?
— Prezado policial, com certeza não vai me acreditar de saída, como os imbecis geralmente não acreditam, mas...
— Parado aí! Que história é essa de me chamar de imbecil sem nem me conhecer?
— Ah, já estou tão acostumado a topar com imbecis que em princípio considero qualquer desconhecido como tal... mas vamos ver se você é ou não. Se eu lhe disser que a explosão do aeróstato nos jogou em outra dimensão, você vai acreditar?

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— Ainda bem que acordou — disse uma conhecida voz feminina.
Turbo abriu os olhos e tentou se erguer. Era Avelã quem passava uma toalha em sua testa. E não havia nenhum sinal do incêndio.

— Mas o que há? — exclamou ele. — Cadê o fogo?
— Não sei explicar, guarda. Não sei nem como viemos parar aqui.
Turbo olhou em volta. O repórter e o barbudo estavam lá, observando-o.
Pareciam estar numa pradaria sem fim, recoberta de gramíneas amarelas de boa altura e com um incessante tráfego aéreo de borboletas, joaninhas e libélulas. A grande distância, colinas verdejantes.
Ele tentou se erguer:
— O que é isso? Quem nos transportou para cá?
— Tenha calma, guarda — insistiu Avelã. — Esse seu galo na testa...
— Ah, sim — e ele o apalpou. — Mas tudo bem, com galo ou sem galo eu quero saber o que foi que nos aconteceu.
— Eu sei o que foi — disse o barbicha preta. — Mas você, como leigo ignaro que é, com certeza não vai acreditar.
— Você me chamou do QUE?
— Obviamente você não tem a formação acadêmica para entender as sutis interações espaço-temporais e interdimensionais do espaço plank-einsteiniano, portanto...
Turbo ficou olhando para ele, sem entender nada. Foi o repórter quem explicou:
— Eu já andei falando com esse gajo. Pelo que eu entendi, o que ele quer dizer é que nós viemos parar em outra dimensão.
Turbo passou a mão na testa, apalpou o galo e olhou em volta. Estava com a impressão de ter sonhado aquilo, faltava uma pessoa que estava no sonho, nada fazia sentido.
— Você vai querer me dizer que a explosão do aeróstato nos jogou numa outra dimensão?
O outro ficou boquiaberto.
— Tirou as palavras da minha boca! Não imaginei que sua mente fosse tão aberta!
— Deve ter sido a pancada que eu levei na cabeça — respondeu Turbo, com forte sarcasmo. — Mas pode haver outra explicação, suponho.
— Nenhuma viável, sinto muito. Foi isso mesmo.
Turbo pensou. Como sabia o que o sujeito ia dizer? Parecia-lhe ter sonhado com aquilo...
— Acho que todos nós desmaiamos e alguém nos transportou para cá. Mas por que? Que lugar é esse?
— Eu não falei? — disse o homem barbudo.
— E quem é o senhor, posso saber?
— Eu sou o Professor Aloísio Estandarte Vidigal Peixoto, o famoso cientista, físico atômico e cosmólogo, autor de importantes tratados sobre o microcosmo e o macrocosmo.
— Muito prazer. Sou o policial Turbo Nei Manolo, e nunca ouvi falar do senhor.
— Por favor — interrompeu Avelã. — nós precisamos voltar ao nosso mundo, ou morreremos de fome. O senhor deve saber o que temos de fazer!
— Para que pudéssemos retornar seria preciso montar um complexo laboratório científico, com tecnologia de ponta, e isso não me parece possível aqui e agora.
— O que tem nessa valise?
A pergunta abrupta partira do repórter. O Professor Aloísio, porém, abraçou-se à valise como se a sua vida dependesse dela, e exclamou furioso:
— Não toque na minha valise! Ela é minha, ouviu? Ela é minha!
Turbo chegou junto dele e arrancou-lhe brutalmente a maleta. Para o policial o homem era suspeitíssimo por suas atitudes e apresentava sintomas evidentes de loucura.
Aloísio jogou-se contra Turbo, que entregou rapidamente a valise a Avelã. Os dois homens se atracaram e Turbo exclamou:
— Jacson, me ajude! Avelã, veja o que tem na valise!
Avelã ajoelhou-se no solo, depositando a maleta, enquanto Turbo e Jackson procuravam conter o homem vociferante. A maleta não havia sido trancada embora tivesse uma fechadura. Ela ergueu então a tampa...
— Pare! Não faça isso! Ainda não fiz os cálculos...
Num supremo esforço o professor livrou-se dos dois homens e quase voou na direção da jovem.
Uma espécie de turbilhão cor-de-rosa surgiu do nada, envolveu a todos e quando Turbo deu por si mesmo, estava de volta à cena do desastre, com os demais.
Turbo, Avelã e Jackson estavam bastante atarantados e as pessoas, inclusive guardas que permaneciam no local, por demais desavisadas. O cientista afinal logrou reaver a sua maleta e fugiu numa disparada louca, após gritar: “Que sorte! Que sorte improvável!”
Turbo arrastou-se até a jovem enfermeira:
— O que você viu quando abriu a mala?
— Somente um clarão, como de magnésio, que me ofuscou... ainda estou a ver bolinhas...
— Vejam! — interrompeu o repórter. — Ele entrou num aerocarro...
— E isso quer dizer...
— Não vai dar o alarma, Turbo?
— Deveria... alguém deveria... mas a minha cabeça dói tanto...
— Anotei o nome dele — disse Jackson. — Ele certamente era passageiro do dirigível, tinha alguma invenção perigosa na maleta e ela foi ativada pelo choque. Ela jogou a gente em outra dimensão e nos trouxe de volta quando Avelã abriu a valise, de alguma forma o efeito foi revertido.
— Vocês aí estão bem? — indagou um sargento que se aproximou.
Turbo deu de ombros. Contar a verdade era caminho certo para o hospício...

Rio de Janeiro, 16 de setembro de 2012 a 12 de julho de 2018.



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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 14/11/2020
Código do texto: T7111169
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