Sob o olhar da madrugada





A festa estava animada, a música convidava a dançar e aquelas mulheres bonitas não eram suficientes para afastar da sua mente a preocupação que lhe martelava sem parar. Por que será que ela não quís ir à festa ? Perguntava-se.  Era sempre tão alegre e festiva, gostava de dançar e de estar presente em todos os eventos que se lhe apresentavam. Justamente naquela noite em que mais ele desejava estar com ela , por sentir-se um pouco desanimado, ela havia rejeitado o convite. Somava-se a esta inquietação duvidosa a sensação intensa e constante de estar sendo observado por um par de olhos enigmáticos e cruéis. A sensação era tão forte que lhe causava arrepios e um frio que percorria ao longo da coluna deixando-o meio petrificado. De nada adiantaria continuar naquela festa se o seu mal estar era crescente. Resolveu ir embora para casa não sem antes passar pela dela para ver o que realmente estava acontecendo. 

Despediu-se dos anfitriões e alguns convidados conhecidos, sibilou desculpas esfarrapadas e saiu atabalhoadamente como se estivesse bêbedo. No entanto, não tocara em uma gota de álcool nem sequer havia degustado as iguarias oferecidas. Na rua uma garoa fria serviu-lhe de agasalho, a calçada úmida era a sua passarela de desfile rumo à verdade. Assim pensava. Com os pensamentos fervilhando na mente e aquela tenebrosa sensação de estar sendo espionado, não se deu conta de um imenso buraco que haviam escavado em plena rua, possivelmente alguma reforma, sem aviso para evitar acidentes. Tinha retirado os óculos para limpá-los no lenço pois estavam embaçados, realizando movimentos circulares e lentos enquanto segurava com dificuldade e  frenesí a foto da sua amada que trazia no verso breve declaração de amor seguida do seu nome e o seu telefone, sombreados pelo carmim desbotado dos seus lábios, alí carimbado.


Remoendo idéias caminhava calado absorto na sua desconfiança e desalinho sem se preocupar com a visão comprometida pela falta dos óculos, passo a passo ía na direção do buraco que o tragou sem piedade quando dele abeirou-se sem notá-lo. Antes de mergulhar na escuridão do desconhecido, num gesto puramente reflexivo atirou os óculos e o retrato à beira da cratera e nela mergulhou, agora assustado. Tratava-se de um buraco de razoável profundidade que lhe propiciou a quebra do pescoço com a sua morte instantânea. 

Nem bem o débil sol cumprimentava os transeuntes nas ruas, ela se espreguiçava na sua cama debaixo do seu farto edredom pensando em desculpar-se por não lhe ter acompanhado à festa . Foi tolice da sua parte, reconhecia. Bastava dizer-lhe que preferia estar a sós com ele no seu ninho aconchegante. Temendo não ser compreendida no seu desejo apenas recusou sem justificar-se. Ele haveria de perdoar-lhe. Pensava em voz alta quando ouviu a campainha da porta soar brevemente. Desceu as escadas que ligavam o dormitório à sala, quase aos pulos, apreensiva. Quem seria tão cedo? Teria ele se atencipado e vindo pedir desculpas por ter ido sozinho à festa? 

Diante da porta recompôs o roupão, ajeitou o cabelo que se derramava em cascatas da cor do poente sobre os ombros, respirou fundo e abriu a porta. Um estranho fitou-a nos olhos e sem rodeios inquiriu:
           - Senhora "X" ?  
**Ela balançou a cabeça num gesto afirmativo. 
          - Reconhece estes óculos?
**Voltou a repetir o gesto .
          - Esta foto é da senhora, pois não? 
          **Sim, falou com voz débil.
          - A senhora pode acompanhar-me neste momento? 
          **Do que se trata, perguntou, já bastante ansiosa. 
          - Nada demais, falou o desconhecido. Apenas para fazer o reconhecimento de um corpo. 
Caiu desmaiada aos pés do investigador enquanto formava-se o tumulto na vizinhança pela turba de curiosos...




Bjs soninha
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