O CAÇADOR

Depois de exaustivo dia de trabalho no campo, ele nada mais fazia nos fins de tarde e parte da noite que não fosse sair com seu cão para caçar.

Era uma rotina de muitos anos. Em grande parte da noite ele ficava fora, embrenhado na caatinga, caçando qualquer animal que surgisse.

Antes de o sol despontar, quase sempre retornava para casa trazendo às costas o fruto da caçada que empreendera durante a noite. O cão era bem treinado e logo que começava a escurecer começava latir, como se o chamasse para mais uma aventura.

Quase todas às vezes, ele ia acompanhado do pai e de um irmão. Assim, durante a noite se arriscavam na escuridão à procura da caça. Somente nos dias de lua nova e início da crescente ele não saía, devido o excesso de escuridão.

Dificilmente voltava para casa sem trazer alguma caça abatida. Ele era considerado um grande caçador. A fama não tinha vindo de graça, já que até mesmo onça ele já conseguido matar nas andanças pela mata rala que compunha a região. Ele pensava que os animais nunca acabariam.

Naquele dia, no entanto, ao sair mais uma vez para a caça, levava apenas sua arma, seu cão “capitão” e a lamparina. Mesmo acompanhado de um irmão mais novo, não poderia imaginar o que iria acontecer naquela noite de lua cheia. Ele tinha mais mobilidade em suas caçadas nas noites de lua cheia, devido à facilidade que havia em se locomover pela caatinga, sem o uso de lanterna. A única luz que carregava, era uma velha lamparina que levava a tira-colo junto ao embornal, para ser acesa quando resolvesse parar em algum lugar. O vento soprava com maior intensidade à noite e somente era possível manter a lamparina acesa quando se refugiava em alguma gruta ou sob a proteção dos enormes lajedos, muito comuns na região.

Quando, capitão, seu principal cão de caça, começou a latir, ele sabia que podia esperar, pois, logo conseguiria atingir seu intento. Seu cão nunca se enganava e, tampouco latia à toa.

Depois de cerca de cinco minutos de intensos latidos, observou que o som dos latidos do cão se aproximava do local onde eles se encontravam. Minutos depois, o cão praticamente exausto, perseguindo algo invisível, passou por eles. Mesmo estando perto do seu dono, “capitão”, continuava latindo e em perseguição de algum animal que somente ele via. O cão visivelmente cansado perseguiu sua presa até um velho pé de angico seco. Parou e ficou embaixo deste, latindo como se a caça houvesse subido pelo tronco acima.

O velho angico tinha pouco mais de três metros e somente dois galhos retorcidos ainda se encontravam intactos e não havia caído, já que este tinha morrido há mais de três anos.

O cão continuava latindo e arranhando o tronco do pau como se quisesse subir tronco acima, em busca da presa.

Quando o caçador e seu irmão se aproximaram, olharam para o tronco e após ter acendido a lamparina, e até mesmo com a luz da lua que resplandecia, nada viram no tronco liso ou nos galhos.

Ele e o irmão subiram até os galhos e mesmo lá de cima não conseguiram ver nada, nem mesmo uma lagartixa que pudesse fazer com que capitão pudesse se interessar. Este, no entanto, continuava latindo e arranhando o tronco como se quisesse subir para pegar o animal que seu dono não via.

O caçador, vendo o cão exausto de tanto latir e por já sentir-se incomodado com os ganidos deste, colocou-lhe uma corda em volta do pescoço o obrigou a seguir até um anteparo de pedra que havia ali perto. Ali ele sempre parava para fazer um pequeno lanche sob a luz da lamparina ou o olhar complacente da lua.

Após ser afastado do tronco seco, o cão pareceu conformar-se e somente de vez em quando rosnava e gania, enquanto olhava para o local onde ele tinha sua presa.

Depois de comerem a farofa, rapadura e tomarem água que carregava num velho cantil, eles já se preparavam para levantar-se, quando notaram que o cão se desvencilhara da corda no pescoço e rosnando, dirigia-se em direção ao angico, numa posição de ataque.

Estranhando a atitude do cão, começou a chamá-lo pelo nome, tentando com isso desviá-lo daquela situação, que segundo comentários deles era “caduquice de cachorro”.

Embora sendo chamado insistentemente, o cão em momento algum, dispôs a obedecer. Em certo momento, pulou para o lado, tentando desviar-se de algo que o atacava, para depois perseguir o imaginário animal até uma loca que havia a menos de dois metros do local de onde eles estiveram sentados fazendo a merenda.

O caçador mesmo sem nada ver, embora a lua fosse clara, sentiu que alguma coisa passara por entre suas pernas, pois sentiu um leve roçar nelas.

Querendo descobrir a presa, objeto de tanta insistência de capitão, foi até o local onde este se encontrava acuando o “bicho” e sabendo que a loca era muito rasa, acendeu a lamparina e colocou-a na entrada da mesma para ver que bicho era.

Olhou demoradamente, chamou o irmão e depois de minutos, sem nada verem, notaram, no entanto, que deveria haver algo lá dentro, já que ouviam o som característico de um animal cansado. Ficaram ali por mais de dez minutos, ouvindo o animal acuado, cansado, mas sem poder vê-lo e mesmo com os latidos de capitão, foram obrigados a sair dali quase que o arrastando já que ele não queria abandonar sua presa invisível.

Preocupados e com certo medo, acharam melhor abandonar o local, o mais rápido possível, já que não poderiam enfrentar algo que não viam e que apenas ouviram uma respiração cansada. Existia muitas estórias de assombração que povoava o imaginário do sertanejo, por isso resolveram sair dali e mais do que depressa desceram a íngreme ladeira que os levaria de volta a casa, sem, no entanto, nenhum dos dois ter coragem de perguntar ou comentar qualquer coisa sobre aquele acontecimento.

Capitão ia quase que sendo arrastado ladeira abaixo, parecia que não desejava abandonar o local.

Chegando a casa, deixaram o cão amarrado e foram dormir, depois de breves comentários sobre o acontecimento daquela noite. Ao levantarem-se ainda cedo naquele domingo, notaram que o cão novamente havia se soltado e não se encontrava nas redondezas da casa e tampouco voltara depois dos chamados do dono.

Inconformado com o desaparecimento de seu cão predileto, chamou o irmão e dirigiram-se ao local da noite anterior, para certificar-se, se havia algum rastro de animal dentro da loca e até mesmo para ver se capitão havia voltado para lá.

Subiram a ladeira e quando se aproximavam dos lajedos, viram de longe seu cão estendido no chão como se estivesse dormindo. Foram se aproximando e quando chegaram junto ao animal viram que o mesmo estava morto. Sua cabeça havia sido arrancada e somente o corpo ensanguentado ainda estava sob a proteção das enormes lajes que serviam de anteparo contra o sol.

O caçador ajoelhou-se perto do cão morto e mesmo sem querer as lágrimas correram rosto abaixo. Minutos depois de reverenciar o amigo morto, olhou atentamente dentro da loca e nem mesmo um rastro de calango havia . Tudo estava perfeitamente limpo e a terra solta sem nenhuma marca visível que pudesse indicar a presença de que algo pudesse ter estado ali.

A única certeza era o cão morto e uma cabeça desaparecida. Pegou o animal que já se encontravas frio, levou-o para uma grota que havia ali perto e por mais de meia hora ficaram colocando pedra sobre o cão morto. Queriam preservar os restos mortais do valoroso animal dos urubus.

Quando iam embora, olharam para o velho tronco de angico e em cima deste, num dos galhos a cabeça do fiel companheiro estava espetada.

Naquele momento sentiu no corpo um arrepio e chamando o irmão, disse-lhe:

- Vamos embora o mais rápido possível, pois não quero ver nem ter a minha cabeça lá em cima. Desceram à ladeira, quase que correndo, pois o medo que nunca haviam sentido, agora fazia parte deles, naquele dia.

Quando chegaram a casa depois de contarem o acontecido da noite e o que haviam acabado de ver, pediram para que ninguém mais voltasse àquele lugar, principalmente de noite. Depois daquele dia, nunca mais ele e nenhum da família saiu para caçar.

Tempos depois, começaram a desaparecer pessoas que saiam para caçar a noite, mas, ele nunca teve coragem de dizer para ninguém o que sentira naquela noite de lua cheia, no local que ele apelidara de "loca do cão".

Quando desapareceu o quinto sertanejo, no período de dois anos, ele, o pai e dois irmãos resolveram voltar à loca do cão para tentar descobrir o que poderia estar acontecendo. Num dia bem cedo, todos devidamente armados, subiram a ladeira e quando chegaram ao local da loca, procuraram ao redor e nem os ossos da cabeça do seu fiel cão ainda se encontrava espetada no galho do angico ou embaixo deste. Foram até o local onde enterrara o pobre animal coberto de pedras e começaram a tirar as pedras que haviam colocado sobre ele.

Quando tiravam as últimas pedras não puderam acreditar no que viam seus olhos, o esqueleto do cão havia desaparecido e no lugar destes, os cadáveres dos caçadores que haviam desaparecido nos últimos anos.

Sem nada entender, ele procurou as autoridades e depois de exaustivas explicações conseguiu convencer o delegado da pequena vila que eles não tinham nada a ver com aquilo, já que todos os mortos eram amigos da família.

Quando chegou a casa, depois de sentar-se na rede que havia armado ficou pensando e tentando imaginar: Por quê ele e seu irmão não haviam sido vítimas como os outros caçadores? Onde foram parar os ossos do seu cão?

O quê teria matado seu cão e os caçadores?

Essas foram perguntas, que ele nunca conseguiu responder.

Hoje existe no local onde foram encontrados os cadáveres dos caçadores, uma cruz fincada. Aquele trecho ficou sendo evitado por todos. Corre uma lenda, de que um monstro saí do inferno e vem esperar aqueles que ousem se aventurar por aquelas bandas, nas noites de lua cheia.

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 20/03/2009
Reeditado em 21/04/2014
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