A FUGA do QUILOMBO


[...] Um vulto era visto passando desesperadamente dentre as veredas da caatinga já molhada e como sempre perigosa àquela época do ano, os passos na lama soavam alto, ofuscando-se apenas pelo latido voraz dos cachorros e os trovões que vinham depois de um clarão providencial para que a fuga se tornasse possível.

A mata se tornava incerta com aquela escuridão, não se via a frente, nem os lados e a vista do céu também era dificultosa. Se via lampejos de fogo das tochas usadas pelos jagunços que já não estavam muito longe, e era aguardado um milagre...

Os galhos que cortavam seu corpo de diversas maneiras e profundidades, àquela altura já não lhe causavam dor, nem medo, seu temor era outro, sua dor era outra, e seus olhos ainda insistiam em tentar ver o céu em busca de alguém que pudesse se apegar.

Na memória, sua vida corria de maneira retrospectiva, as brincadeiras de menina, as confissões em cima da jaqueira que ficava próxima a sua choupana, as histórias das velhas negras contadoras de histórias... O primeiro... O primeiro amor...

Espremeu os olhos talvez com dor, talvez com arrependimento, o pranto queria rolar, dava vontade de gritar, a voz não queria mais se segurar no peito, a boca quis se abrir naquele desabafo, sua mão não permitiu, acenou desesperadamente que “não” com a cabeça, respirou fundo, não podia parar, não podia ser vista, não, ainda não!

O barulho da chuva voltou a ressoar fortemente nos seus ouvidos, o último tiro para o alto foi ouvido, antes que o bacamarte não pudesse mais disparar, se assustou, olhou pra trás, respirou fundo, apalpou o corpo, ainda estava viva, os lampejos de fogo continuavam fortes, e ela olhava pra trás, ainda querendo chorar descontroladamente.

Por que tanta crueldade? Não conseguia entender, se tudo o que queria era viver em paz, tudo o que queria era ver seu filho crescer... Tinha medo que lhe ocorresse o que sua mãe lhe contava, das barbaridades que sofreu no engenho onde foi escrava, tinha medo que aquela criança que estava para vir ao mundo agora, servisse de alimento aos cães como um dia foi com sua irmã mais velha.

- Aaaaaaaaaaaaahhhhhhh!!!! – Arregalou os olhos enquanto colocava a mão na barriga parando de correr!

- Agora não... Agora não! – Desta vez não conseguiu controlar o choro, não conseguia correr, sua bacia começou a doer, ela se agachou num pé de caraibeira ainda rangendo os dentes de dor, o pranto insistia em vir descontroladamente, mas ela não podia parar ali, certamente seu grito foi ouvido, e já dava pra se perceber mais de perto o latido dos cães.

Fazia força pra se levantar contrariando as dores, se agarrando nos galhos e no tronco da caraibeira, pressionando as costas contra a árvore, relutando contra o barro que fazia com que seus pés escorregassem, resolveu lutar, decidiu rezar...

O sino da Igrejinha faz delem dÉm DÓn
O sino da Igrejinha faz delem dÉm DÓn
Deu meia noite o galo já cantou
Seu tranca rua que é dono da gira
O corre a gira que Ogum mandou
[...]

Graciliano Tolentino
Graciliano Tolentino
Enviado por Graciliano Tolentino em 03/07/2010
Reeditado em 14/11/2019
Código do texto: T2355982
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