OS VIZINHOS

Teo chegou do trabalho às 8 da noite. Exausto se jogou no sofá. A porta foi fechada pelo vento forte que vinha pela janela aberta de seu apartamento.

-Droga, que frio. Vento desgraçado.

O escrivão de polícia fechou a janela e dormiu um sono pesado.

Sonhou com um terremoto na delegacia. Todos os presos haviam fugido e um gritava: “iremos te pegar cara. Iremos te matar”.

Acordou com a cortina da sala batendo em sua cara. O vento havia aberto a veneziana que não fora bem fechada. “Só pode ser um furacão”, pensou aturdido. Lá fora avistou uma garota. A sua vizinha que acabara de mudar. Era mais uma que mudara em pouco tempo para aquele prédio. “Será que é no andar aqui em cima?”

A questão já tinha sido formulada em sua mente mais de cinco vezes no último ano. “O que diabos acontece com as pessoas que moram nesse apartamento em cima?” Era a outra questão. A resposta Teo ainda não tinha até por que nem tinha tempo de investigar isso. Nem mesmo era sua profissão, investigar.

Continuou olhando pela janela. Agora tinha abaixado o vidro e pensou como era azarenta aquela moça. Mudar com um frio e vento daqueles e ainda naquele apartamento que expulsava todo mundo.

Meio zonzo de sono, afinal trabalhara vinte e quatro horas, direto e dormira apenas uma hora, olhou para o relógio e viu que precisava dormir mais.

-Meu Deus, que coisa, preciso dormir. – Ele balançou a cabeça.

Precisava dormir mas sentiu que agora era questão de honra: agora precisava saber o que aconteceria naquele apartamento de cima do seu.

Vestiu seu sobretudo, lavou o rosto com um pouco de água e sabonete líquido e subiria a escada.

Ouviu vozes no elevador, antes de subir. O zunzumzum era cada vez mais próximo. Como estava na 7º andar parecia que as pessoas que falavam estavam no 2º. Era a garota, com certeza, pensou. Mas não estava sozinha. Ouviu uma voz de uma senhora mais velha e havia uma discussão muito forte.

-Você não pode controlar a minha vida dessa forma, mãe. Você não sabe o que está dizendo. Nem mesmo viveu comigo para saber.

Teo parou. Não poderia subir agora. Decidiu ficar no andar de baixo.

Queria saber mais sobre a moça e aquele era o momento. Afinal de contas o que você pretendia fazer, Teo subindo para o andar dela?

Realmente concluíra que não tinha nenhum dom para investigação da vida alheia.

Para sua surpresa a garota desceu no andar de cima, mas sua mãe não. Ele ouviu a moça se despedindo com gritos de “vai embora sua maldita dos infernos”.

Indeciso entre subir naquele momento para recepcionar a garota, e assim aproveitar o êxtase para saber o que acontecera, e outra possibilidade de esperar um momento mais calmo para saber algo depois, decidiu subir.

Foi lentamente deixando degrau por degrau para baixo assim como o medo de conhecer o misterioso andar de cima. O desconhecido para ele era a vida alheia. Preso a papéis e boletins de ocorrências, a vida das pessoas apenas passava em seus dedos digitando um fato de desespero ocorrido com elas. Nunca havia presenciado a história de verdade. O prazo era curto para a digitação. Tinha que entregar vários boletins em uma hora apenas, pois era cobrado pelo delegado para digitar rápido e se cumprir o lema de se “desfazer logo do cliente”.

Nas únicas vezes em que poderia ter a chance de saber de algo como uma mãe que chorava pelo filho preso, por exemplo, o delegado chegava e levava a moça para a sala dele.

Tudo isso passava pela mente sonolenta de Teo, ao subir os degraus de seu andar.

Em cima poderia conhecer uma história, afinal. No seu serviço, nunca.

E poderia dizer algo sobre o apartamento para a moça. Algo como “cuidado com esse apartamento, pois, há algo inexplicável: várias pessoas mudaram dele no último ano em que moro aqui, imagina quando não morava. Não sei o que acontece aí dentro”.

Ela estava abaixada, pegando uma caixa de papelão lotada de algo que parecia roupa. Não conseguia levantar direito. Apesar de alta a moça era esguia e fraca.

Era loira natural, de estatura mediana. Seus olhos grandes e assustados avistaram Teo que fizera um barulho ao subir a escada.

-Olá, dona, pode deixar que eu a ajudo.

Ele veio com as mãos estendidas e evitou a pergunta de se podia ajudar, pois já sabia que a moça estava nervosa e, atrapalhada, aceitaria a ajuda, se não perguntasse.

Ao tentar pegar a caixa foi interrompido com um tapa na mão.

-Não mexa aí cara! Não dei minha permissão.

Teo se afastou com o olhar de louca da garota de, aproximadamente, 25 anos.

Definitivamente, percebera que sua magreza não era natural. Era caso de drogas com certeza. Já tinha visto isso em seus boletins. Ao menos para alguma coisa serviu seu trabalho. Quando colocava o título do artigo da lei em que se enquadrava o crime e via algumas fotos, logo depois, para fechar o inquérito, percebera que as drogas deixavam a pessoa magra. Sim era drogada.

-Tudo bem, desculpe! –disse desconcertado.

-Quem é você, cara, para achar que pode ir mexendo em minhas coisas, disse Diva empurrando a grande caixa com os pés para dentro do apartamento.

-Não sou ninguém. Sou apenas o morador de baixo do seu apartamento, disse Teo, levantando a mão direita.

-Certo. Que bom. Tenho um vizinho enxerido idiota.

Diva deu de ombros pegando a trouxa de roupas que estava no chão.

Jogou em seguida para dentro.

-Bom, muito prazer, moça. Só vim para dizer que se precisar de algo pode contar comigo.

-Certo, certo, tudo bem, tchau. Ela bateu a porta com toda a força do vento que batera a porta de Teo. Ela é como o furacão, pensou.

-Mais uma vez aquele tormento se repetia na mente do escrivão. Sempre que tentara fazer amizade com alguém era tratado daquela forma. Estava decidido. Iria ao psicólogo do Estado. O governo tinha que oferecer algo para um funcionário depois de 10 anos de serviços prestados. Não conseguia se socializar mais. Era solitário. Sua mãe e seu pai haviam ficado a quilômetros de distância na cidade de Manaus, desde que havia passado no concurso para escrivão de polícia no Estado de Santa Catarina. Não tinha como conversar com ninguém. Não conseguia ninguém que o ouvisse.

Desceu as escadas, voltando ao estado anterior. Voltou ao seu apartamento. Fechou-se para o mundo como era seu costume. Deitou-se novamente e não conseguia pregar os olhos.

Levantou-se com um barulho de uma janela batendo. Saiu na sua janela e olhou para cima. Viu que a moça do andar de cima havia estreado a janela. Bateu com força e só naquele momento percebera que havia uma presilha para segurá-las. Prendeu-as e olhou para baixo acenando para Teo com um sorriso raivoso. Teo retribuiu sem graça.

Era um contato, enfim. Ela talvez tivesse se arrependido. Era isso. Ele ficou feliz. Decidiu não procurar nenhum psicólogo. Conseguiu um contato com a garota. Algo estava mudando em sua vida. Continuou olhando para cima e viu a garota entrar tirando a raiva do rosto e o sorriso ficou natural, amistoso. Com certeza era um pedido de desculpas. “Ela estava nervosa seu idiota”, pensou. “Que momento para você conhecer a moça”. Com o sentimento de vitória, na janela, olhando para o terreno não edificado ao lado de seu prédio, Teo pensou que vida começava. Contemplou um passarinho levar comida para seus filhotes em seu ninho. Contemplou as palmeiras em um balançar vívido, pulsante como seu coração. Concluíra que as coisas aconteciam de uma forma ou de outra. Bastava tentar. E ele fizera isso.

Dormiu bem aquela noite e nos três dias seguintes que faltavam para o fim de semana não ouviu nenhum sinal da garota lá em cima. Saiu várias vezes na janela para olhar para cima e não avistava a moça. Aliás a janela nem sequer abria.

O fim de semana chegou. Aos sábados Teo costumava ler, após a limpeza de seu apartamento pela faxineira, Dona Maria, que fazia o serviço toda manhã. Não se permitia ter abertura com ela além de dar instruções de o que precisava ser limpo e arrumado.

Esticou-se no sofá. Abriu a janela e, enfim, avistou a moça. Ela não estava vestida, notou. A moça olhou para baixo e o cumprimentou sem a mínima vergonha.

Ele respondeu e acenou, sentindo sua face se corar.

-Tudo bem, vizinho?

-Sim, sim, tudo.

-Então tá bom, até logo.

-Até.

Como assim? Até logo? Teo ficou perplexo com a situação. O que ela fazia nua em casa e acenando para ele sem a mínima vergonha. Não sabia responder isso e tinha que tirar essa dúvida. Desceu e teve uma idéia muito comum: perguntou ao porteiro. “Como não pensou nisso antes, seu idiota, Você é um nerd mesmo, Teo”.

-hahahahaha. A risada pode ser ouvida por vários metros. O porteiro ria ao ouvir a pergunta de Teo sobre quem era aquela moça.

-Cara, você é esquisito hein? Não sacou quem ela é ainda? Ela mora no apartamento em cima do seu e não percebeu isso?

-Não fico muito em casa João.

-É verdade, desculpe, Teo. Bom você vai ter que descobrir. Nesses dias encontramos uma caixa de papelão no lixo, com vários pertences, que, é claro, só poderia ser daquela louca.

-Como assim? O que tinha dentro dela?

-Você vai precisar ver cara. Na verdade nós começamos abrir e não continuamos. Descobrimos algo sobre a moça. Você precisa ver.

-Onde está a caixa?

-Está na casinha de máquina do elevador. Pode subir lá. Tome a chave, preciso ficar na portaria.

Teo subiu o elevador e entrou na saleta. A caixa estava aberta. Dentro havia vários filmes pornográficos. Pegou os DVDs e na capa era a moça do apartamento de cima. Por isso ela era daquele jeito, pensou. Por isso sua mãe falou com ela daquela forma. Que tipo de gente é essa que vem morar naquele apartamento.

Teo levou um dos filmes para o apartamento devolvendo os demais para o porteiro. Instruiu-o para que ele queimasse todos os Dvds, pois, poderia expor as pessoas, sem motivo.

Chegando a casa, colocou o Dvd e percebeu que a moça gravava as suas transas naqueles Dvds. Talvez comercializasse. Talvez entregasse para o próprio cliente por um preço.

Resolveu subir e conversar com a moça.

Ela atendeu a campainha e o mandou entrar.

-Oi gato. E aí o que deseja? - Ele viu as câmeras instaladas no apartamento. Era uma maníaca como previra.

-O que faz com essas câmeras na parede?

-Você nem imagina?

Teo odiava perguntar e ter que ele mesmo responder. Mas ela fizera não sentir raiva naquele momento. Gostou de responder aquela pergunta.

-Imagino que goste de filmar seus momentos íntimos não é?

-Sim, como sabe?

-Estão todas viradas para a cama, disse apontando para as câmeras.

-Hum é verdade. Você é inteligente moço. – Ela fechou a porta com calma e charme. O perfume em seu cabelo era adocicado, contrastando com o ambiente acre. Teo sentiu-se envolvido com o ambiente e com a garota, mas, não deixou isso continuar.

-Preciso ir embora.

-Calma, vamos fazer um filme.

-Não, obrigado.

Teo saiu e desceu em seguida. Confirmou a história do porteiro. Afinal ele sabia mesmo. O porteiro sabia de tudo.

A moça do andar de cima mudou 5 meses depois e vários filmes haviam sido feitos para seus clientes. Inclusive Teo descobrira depois que o porteiro fez um e por não ter pagado estava no lixo como aqueles que ele tinha encontrado.

Ela foi embora. O apartamento era de aluguel e a garota foi mandada embora por conduta inadequada ao condomínio. Já estava acostumada.

Teo vivera algo. Era estranho, mas, a vida mostrou o que de mais assustador poderia mostrar a alguém: provara a ele que a sua suspeita era verdadeira a certo ponto. Descobriu que o serviço o ensinou um pouco, mas, precisava viver para descobrir o todo, a vida pulsava era a realidade escondida através dos papéis.