Encontro com o desconhecido

O presente desconhecido

No início, apenas uma máquina na vida de Júlia. Fria, sem vida própria, porém cheia de primazia. Foi presente de aniversário de quinze anos. Preferiu no lugar da festa. Júlia não tinha muitos amigos, aquela seria a solução de seus problemas.

Sem nenhuma cerimônia, o presente tornou-se procurador de suas palavras. Com apenas alguns cliques, programou o seu destino.

Até então, o livro era seu melhor e maior companheiro. Amigo solitário, quanto melhor, mais sozinho queria tê-lo.

Mas ai ela chegou. Todas as economias da família foram investidas no presente. Ela chegou envolvida em plástico de bolinhas e suportes de isopor. Júlia foi tirando sua embalagem seguindo um ritual de quem despe um parceiro durante as preliminares. A cada parte descoberta, uma sensação diferente. Tarefa que se resolveria em alguns segundos, Júlia concluirá em intermináveis minutos.

O melhor espaço da pequena casa já havia sido escolhido antes de sua chegada. Pronto, estava instalada confortavelmente próxima da janela, com vista para o novo, para o futuro. Nos primeiros momentos o velho livro ficou no canto. As vinte quatro horas do dia tornaram-se insuficientes para bisbilhotar tanta novidade, sentia-se enfeitiçada pela sua máquina maravilhosa. Não a tirava da cabeça nem mesmo quando estava envolvida nas tarefas diárias. Gastou parte de sua mesada para comprar novas vestimentas. Capas transparentes para não ficar desprotegida do pó que envolvia a cidade grande. Era um sonho realizado. Os pais de Júlia aprovaram a ideia de a filha ter encontrado distração que lhe preenchia os momentos que não estava na escola, diziam que a filha era muito sozinha. Filha única.

Com o passar do tempo, para a pequena Júlia, aquela máquina já era responsável pela sua existência. Uma vez ou outra se lembrava do seu amigo livro e buscava sua companhia para uma visita ao banheiro. Entre uma página e outra recordava o seu tempo de solidão, mas nada que a tirasse o conforto de ter uma nova companhia.

Durante as madrugadas, enquanto seus pais dormiam tranquilamente, o suave som das teclas soava como música de ninar aos ouvidos de Júlia.

Foi em uma dessas madrugadas que tudo aconteceu, o destino de Júlia começava ser traçado. Lá estava desbravando um mundo de novidades quando num clique alguém parecia chamar do outro lado. As palavras foram aparecendo uma a uma. Assustada, ficou olhando. Parecia coisa do outro mundo. Deu uma olhada em volta, nada, nem ninguém por perto. Apenas uma mensagem dizia: “Olá, tudo bem? De onde tc?” "Como se chama?" Por alguns instantes imaginou até num tom de voz, que lhe parecia grave.

Júlia assustada começou a pensar: "Meu Deus! O que está acontecendo? Não sabia o que responder. Ficou ali pensando no que lera na pequena tela: “tc...tc...tc...” Bom, não fazia a menor ideia o que aquelas duas letras significavam. Continuou bisbilhotando sua máquina maravilhosa e inseparável. Mas aquele desconhecido insistia: “você ainda está ai? Muito tímida, como se alguém estivesse a observando de longe, responde: “oi”! Rapidamente o desconhecido pareceu-lhe contente com o esse retorno: “Está sem sono também?” Ah, era muito para uma cabecinha igual à de Júlia. Começou logo a imaginar que poderia ser alguém conhecido que soubesse que ela passava a madrugada inteira trancada em seu quarto, escondida dos pais bisbilhotando seu belo presente. Ficou furiosa e resolveu ir dormir. Nos dias que se seguiram aquilo se repetia curiosamente. Aquele desconhecido parecia estar à espreita para atacar com suas perguntas indiscretas. Como da primeira vez, foi ignorando, uma, duas, três vezes, mas, acabou cedendo. Com pouco tempo já se sentiu a vontade para falar de alguns assuntos que jamais teria coragem de falar com outra pessoa, quando se deu conta já estava lhe contando como tinha sido o seu dia, seus gostos e suas manias, e estranhamente já sabia até que ele tinha terminado um casamento e que ,coincidentemente gostava praticamente das mesmas coisas que ela também gostava.

Com o passar do tempo, a sua máquina já não era apenas uma companheira, era a sua grande aliada. Sabia tudo que ela conversava com o desconhecido que parecia residir no interior da máquina, que, aliás, já não era tão desconhecido! Júlia começou organizar melhor o seu tempo. Tinha um momento que era só para desbravar sua máquina, outro para conversar com o seu desconhecido e até sobrava um tempinho para buscar o velho companheiro livro que não fosse para as visitas ao banheiro. Sua mãe começou a observar que a filha estava mais comunicativa, falando coisas mais adultas... Fato que a deixava tranquila acreditava que a filha estava crescendo rápido.

Foi próximo ao natal que o amigo desconhecido propôs que se encontrassem, afinal, não era comum ter um amigo sem cara, sem cor e sem cheiro. Ficou um pouco cismada, mas confiava muito em sua máquina, ou melhor, na sua aliada, ela não seria capaz de guardar ali dentro algo ou alguém que lhe pudesse fazer algum mal. Seus pais também não lhe daria um presente perigoso. Outra coisa já se falava há muito tempo e um já sabia praticamente tudo um do outro. Estava tudo tranquilo. Ficou combinado na madrugada anterior. Só faltava um plano para sair de casa sem que os pais descobrissem o seu destino. Não foi difícil. A Júlia era uma garota muito certinha, nada que inventasse seria motivo para levantar suspeitas. Para todos, foi fazer um trabalho escolar na biblioteca.

Colocou sua melhor roupa, pegou seu companheiro livro para disfarçar qualquer desconfiança em casa e seguiu para o local combinado. Enquanto isso, sua aliada ficou em casa, vestida em uma nova capa, agora colorida, deu-lhe de presente em agradecimento por ter apresentado um novo amigo. Estava muito feliz.

Vestindo uma camisa colorida, calça preta e óculos escuros como ficara combinado, ele se apresentou. Agora o desconhecido tinha cara, tinha cor e logo ela sentiu que também tinha cheiro. Cheirava naftalina, cigarros e outros cheiros, porém, para Júlia cheiros diferentes de todos os que já conhecia, coisa que só a fascinava mais. Foi um grande dia. Experimentaram todas as fases da vida apesar da diferença de idades. Brindaram igual gente grande, almoçaram como quem tinha fome de companhia e tomaram sorvetes igual crianças. Depois de um longo papo e várias promessas Júlia entrou naquele carro conversível vermelho, visto por pessoas que circulavam no shopping, local do encontro, livre de qualquer perigo. Estava empolgada com tanto cavalheirismo. Partira junto com o desconhecido para um lugar mais desconhecido ainda. Dela, e de todo o resto que a amava.

Desde então nunca mais Júlia foi vista, a única coisa que se sabe é que saiu para um encontro com o desconhecido, informação registrada em sua bela, fria e sofisticada máquina. Somente ela poderá trazer as pistas que poderão levar ao paradeiro da inocente Júlia.

Renilda Viana
Enviado por Renilda Viana em 09/09/2010
Reeditado em 02/04/2012
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