ACERTO DE CONTAS

UM...

...reveillon de 74 fogos coloridos sensação de embriaguez minha mãe me olha com ternura e compaixão todos se aproximam de mim uma massa sonora causa desequilíbrio carros passam em alta velocidade fluxo intenso muito barulho estou no canteiro que divide as pistas voltar implica no mesmo risco de ir adiante totalmente desprotegido estou nu cansado sinto vontade de dormir mas tenho medo uma buzina mais alongada um carro vermelho se destaca entre todos os outros da janela do banco traseiro minha irmã me chama Beto Beto Beto o grito vai ficando cada vez mais forte como se uma multidão tivesse aderido a ele

DOIS...

meu corpo está pesado, inerte, tenho frio e os cabelos molhados, tome cuidado meu filho, Beto, Beto, Beto, acorda Beto, está na hora de ir para a escola, já estamos atrasados, levanta agora ou não vai dar tempo, tá bom, tá bom, eu já ouvi, me deixa ficar só mais um pouco, bom, tu que sabes, se não for agora, não poderei te esperar, espera pai, eu vou, espera só um minuto, tá maluco, não temos um minuto, tem de ser agora!

TRÊS...

O leito é rígido, as luzes já estão acesas, muitos me chamam, tenho mania de esticar o corpo quando acordo, mas ainda o sinto pesado, minhas mãos estão presas, meus dedos parecem amarrados, a cama imensa, não reconheço meu quarto, à frente dos meus olhos uma multidão me espera, mas não são os mesmos rostos de antes, o som começa a ficar claro, estão todos eufóricos, vejo um homem de camisa branca, expressão severa, como que me dando ordens, não é mais meu pai quem está ali em pé me aguardando, as luzes fortes confundem, deitado sobre minha face direita, sinto o contato áspero e duro do solo, diferente dos lençóis macios a que estou acostumado, meu peito apertado contra o chão e meu queixo dolorido denunciam a queda, trago uma das mãos até a altura dos olhos e vejo surgir um balão vermelho, brilhante à minha frente, entendo que devo me levantar.

QUATRO...

Ainda de bruços, junto uma mão em cada lado do corpo, braços flexionados para me colocar em posição vertical, punhos cerrados, como não poderia deixar de ser. Sinto o gosto morno do sangue na boca. Não era pra menos. A cabeça ainda gira e o corpo responde lentamente. Assim não vai dar. Meus braços ainda estão fracos. Preciso tentar de outra forma. Ao menos meus pensamentos já estão organizados, preciso apressar-me. Apoiado sobre os cotovelos, recolho uma das pernas e firmo o joelho direito no chão. Repito o mesmo movimento com a outra. Estico os braços. Punhos novamente contra o chão e estou agora com base mais firme. Ouço chamarem o meu nome novamente. Desta vez identifico as vozes mais próximas. A respiração um pouco ofegante recomenda prudência. Mas realmente não tenho muito tempo.

CINCO...

Não estou no melhor de minhas condições. Talvez pudesse parar por aqui. Minha bolsa está garantida. Ainda que eu não vença, o prêmio será pago. Está no contrato. Basta não me levantar que minha derrota terá sido convincente, honrosa até. O cara pega pesado e eu já não tenho os mesmos reflexos do primeiro assalto. Em outros tempos, quando ainda era um aprendiz, o instinto de preservação ou sobrevivência teria me colocado em pé antes que eu pudesse raciocinar. Agora, a consciência me permite decidir... Foda-se! Eu vinha bem na luta e nem sei como foi que ele me acertou. Escolhi esta vida e não tenho medo do destino. “Vamos lá, Beto. É hora de voltar!” — desta vez quem fala sou eu mesmo.

SEIS...

Encho os pulmões de ar e, firmando o pé esquerdo à frente, me afasto do solo onde repousei por pouco mais de cinco segundos. Com o auxílio das cordas — que alcanço com a luva direita — ponho-me novamente ereto. Ainda recobrando os sentidos, tento agir com naturalidade. Certa vez fui abordado por policiais depois de ter derrubado uma garrafa de whisky junto com um amigo. E me vi na mesma situação; tendo que simular equilíbrio. E todos sabem como é difícil passar credibilidade nestas ocasiões. O homem careca de camisa branca aproxima-se para se certificar-se da minha condição. Preciso demonstrar segurança. Sei que, como os policiais da noite, ele não será muito tolerante.

SETE...

Agito os braços e a cabeça. Fico saltitando para acelerar a recuperação. O juiz me olha nos olhos. No canto oposto, meu oponente aguarda apreensivo. Observo seus movimentos. Ele parece íntegro. Eu ainda me sinto um pouco instável. Sei que ele quer me intimidar. Assim como eu tento me convencer de que estou recuperado, ele empenha-se em sugerir o contrário. Parece confiante. “Bata mais forte da próxima vez” — respondo-lhe com o olhar.

OITO...

“Oito? Como assim, oito? Interrompa esta contagem, seu estúpido!” — penso em dizer, mas na verdade falo: “Estou bem! Estou bem! Deixe-me continuar na luta!”. Um instante de incerteza. “Não conte o nove” — mentalizo. Existe no boxe um mito que diz que todos os nove viram dez. E aí, meu amigo, já era. Isso é verdade. Não recordo de nenhuma luta em que a contagem tenha sido interrompida depois de alcançado o penúltimo número. Eu sou capaz de apostar inclusive que o intervalo entre nono e o décimo é bem menor do que os outros. Por isso estamos no momento crucial. Então, repito: “Deixe-me continuar na luta!”. O árbitro desapontado convence-se de que estou apto e ordena que continuemos.

Meu adversário, plantado no centro do ringue, aguarda meus movimentos. Rodando em torno dele, procuro voltar para a luta. Soa o gongo e eu me recolho para o meu canto, certo de que terei mais dois assaltos para acertar as contas.