MiniConto n.55

De repente, ela começara a sair todas as tardes. A princípio, ele não se dera bem conta disso, mas agora, meses depois, notava que suas camisas não estavam mais tão bem passadas e a mesma comida se repetia no jantar. Fora esses fatos e algum cansaço levemente demonstrado, nada mais que denunciasse a falta dela no lar.

Foram também alguns comentários que ele ouvira pela vizinhança que o alertaram: 'Dalva está tão diferente!'... 'Não tem vindo mais bater papo aqui com a gente' ...  Uai, mas ela não saía de casa todos os dias? 'Onde será que estará indo?'

É, onde será que ela ia quase todos os dias da semana? Exatamente como nos casos iguais ao seu, a suspeita penetrou-lhe a mente como a seta venenosa que, uma vez disparada, não tem mais volta. Ardente, ela o atingiu e queimou-o a dor terrivel da desconfiança.

O modo mais certo de resolver essa questão seria perguntando diretamente a ela - essa sensata sabedoria agora evitada pelo orgulho machista. Haveria um confronto entre ambos e ela saberia que estava se corroendo de ciúmes. Já no dia seguinte resolveu seguí-la por vários quarteirões e viu quando, finalmente, ela entrava numa singela casa de discreta vila que ele desconhecia. Uma hora de agonia depois ele, bem escondido, presenciou a despedida e um ligeiro mas carinhoso beijo dela no rosto de um homem bem apessoado de meia idade. O sangue ferveu em suas veias em tremenda indignação.

Pelo caminho de volta, aquela dor o consumira tanto e tanto que, ao chegar em casa, mal conseguiu encará-la e responder à sua saudação. Enquanto ela preparava um lanche para eles, meio espantada por vê-lo retornar mais cedo do que o habitual, ele andava pela cozinha como animal inquieto, o ódio pela traição crescendo perigosamente em sua mente. Foi então que ela virou-se de frente para ele e disse escolhendo visivelmente suas palavras:

- Olhe, eu não disse nada antes para você pois não sabia se ia aceitar bem, assim resolvi contar de surpresa hoje, dia do seu aniversário, achando que  estaria mais calmo. Cansei de adiamentos, de me autodesculpar e de ser motivo de vergonha frente aos seus amigos. Desse modo, eu estou frequentando aulas de alfabetização para adultos há algum tempo e isto aqui é a aprovação para minha matrícula numa escola regular:

Orgulhosa e sorridente, ela estendeu o certificado de conclusão do cursinho preparatório, todo ele feito com sacrifício do seu descanso - e aquele era o seu presente especial para ele.

Ele, contador formado (e não um bandido) ouviu o sinistro ruído quando, muita trêmula, sua mão deixou cair ao solo uma enorme faca de cozinha no exato momento que caía ajoelhado, envergonhado, e em prantos frente à mulher que o amava muito mais do que ele merecia...


Silvia Regina Costa Lima
1 de fevereiro de 2011



 
SILVIA REGINA COSTA LIMA
Enviado por SILVIA REGINA COSTA LIMA em 01/07/2011
Reeditado em 18/11/2020
Código do texto: T3069592
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