AD AETERNUM - Parte Dois

II

DISSEMOS NO CAPÍTULO ANTERIOR que nada indicava o assombroso rumo que sua vida iria tomar. Bem, isso não corresponde exatamente à verdade. De fato, havia alguns indícios da sua... especial condição; porém, ainda que estes sinais fossem perceptíveis, nem o observador mais atento seria capaz de desvendar o que eles significariam no seu futuro.

Por exemplo, era notável que ele sempre aparentara menos idade do que na realidade tinha; que sua pele, seu cabelo, seus músculos, sua figura, enfim, enganava a qualquer um que tentasse adivinhar-lhe a idade. Em criança, parecia um bebê; adolescente, sua pele lisa e lustrosa como de um recém nascido causava inveja entre os outros meninos e meninas, acometidos -como todos os adolescentes de todos os lugares e de todos os tempos- dos horrores e vergonhas infligidos pelas detestáveis espinhas, acnes e demais infecções de pele. E, adulto, chamava a atenção pelo imutável frescor de sua aparência, mesmo após um dia de árduo trabalho (naquela particular medida relativa aos funcionários públicos), ou de uma das incontáveis noites insones que costumeiramente passava. Mesmo assim, seria quase impossível alguém imaginar o que se escondia debaixo daquela natureza pacífica e complacente, debaixo daquele frescor, daquela jovialidade; mesmo diante dos -tênues- sinais, poucos especialistas no mundo estariam aptos a interpretá-los e a descobrir quem, ou o quê, ele era, na verdade.

Afora as peculiaridades das quais acabamos de falar, sua infância e juventude transcorreram sem sobressaltos maiores do que aqueles comuns ao desenvolvimento natural de um indivíduo do sexo masculino nascido nos rincões distantes e atrasados dos países latino-americanos. Pequenas quedas, leves escoriações, uma e outra briga por causa de uma partida de futebol ou de uma garota ou de uma brincadeira ou de uma inocente bebedeira; nada de anormal, nada de extravagante para um macho latino de dezesseis, dezessete anos. Entretanto, num determinado momento, alguma experiência frustrante (uma desilusão amorosa? Uma grande humilhação em público? Por mais que tenha insistido, sua mãe nunca fora capaz de arrancar dele o segredo, nunca ficara sabendo o que lhe aconteceu naquele dia em que ele chegou da escola resfolegante, rosto e olhos vermelhos) gerou nele uma invencível timidez e uma prolongada reclusão que, tudo indicava, iria deitar por terra o sonho alimentado pela mãe, de vê-lo casado com uma boa e honesta mulher e de acalentar em seus braços o tão desejado neto. A partir deste momento crucial, ele passara a preferir a companhia dos livros aos bailes e festas de sábado; seus finais de semana eram transpostos inteiros em seu quarto, de onde saía somente nos horários de refeições, devorava distraidamente e o mais rapidamente possível qualquer coisa que lhe colocavam à frente e retornava para o auto imposto exílio de seus aposentos. E assim ele foi se tornando gradativamente um solitário, assim ele graduou-se naquele curso inútil e aleatório; foi assim que o tal amigo do pai arranjou para ele o tal emprego público, foi assim que ele se tornou um adulto solteirão que vivia com a mãe, foi assim que os anos despejaram-se apressados sobre todos ao seu redor. Sobre todos, menos ele.

Suas distrações e preferências eram simples: se tivesse em suas mãos um bom livro, nada mais lhe era necessário (não se pode esquecer, é claro, sua adoração por Miss Lolla, a cadelinha yorkshire da família, que o acompanhava onde fosse dentro da casa). Econômico, planejava uma viagem à distante e misteriosa Escócia. Se aspirava a algo grandioso nesta vida, guardava isso para si; contudo, revelara à mãe o desejo de conhecer a fascinante arquitetura de monumentos góticos, antigas pontes metálicas e misteriosos castelos e ruínas das highlands, de onde, segundo lhe constava, procediam seus ancestrais remotos. E, obviamente, queria conhecer o famoso lago onde, segundo a lenda, habitaria o mitológico ser primitivo mundialmente conhecido como Nessie. Por conta deste projeto -e também de uma reconhecida, não diria avareza, mas uma certa precaução, aquele apego ao dinheiro bastante comum nas pessoas que experimentaram na pele as privações da vida-, gastava apenas o mínimo necessário para satisfazer suas necessidades mais básicas; esta -vá lá, deixemos de pudores e chamemos as coisas pelo nome- avareza combinada com uma total ausência de vaidade fazia com que nunca tivesse, ao mesmo tempo, mais do que dois pares de sapatos e dois ternos, um claro e outro escuro; que usasse cada peça de roupa até que ficassem completamente puídas, e os sapatos até que os furos irrompessem nas solas. E assim, economizando cada centavo que podia de seu modesto ordenado, ao completar quarenta anos de idade, ele finalmente havia amealhado a quantia necessária para realizar a tão sonhada viagem. E também para comprar -sim, ele iria se permitir essa extrema liberalidade-, de uma só vez, um novo par de sapatos e um novo terno, pois um evento como este, uma viagem à refinada Europa, demandava uma dose extra de elegância. Nem lhe passou pela cabeça que um terno adquirido por um preço módico -módico, sim, pois prodigalidade tem limite- numa pequena cidade argentina poderia não corresponder exatamente aos ditames das novas tendências da moda nas capitais europeias...

P.S. 01: A revelação sobre a assombrosa reviravolta na vida do personagem se dará no capítulo 5; porém, a postagem do capítulo 3 só acontecerá quando o presente capítulo atingir 100 leituras; portanto, se gostar da história e quiser ler a continuação... divulgue!

P.S. 02: Posso demorar um pouco a responder os eventuais comentários: tenho um probleminha de filtro de internet no trabalho. À noite, responderei a todos os comentários. Se os houver, claro...

paulo marreco
Enviado por paulo marreco em 01/11/2011
Código do texto: T3310970
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