AD AETERNUM - Parte Três

A VIAGEM DE AVIÃO, ao contrário do que ele havia previsto ou desejado, foi um terrível e prolongado pesadelo. Sua experiência com veículos de transporte coletivo se restringia ao ônibus do dia a dia, conhecido e seguro, e a um agradável passeio de trem através da montanhosa região oeste da sua Argentina que fizera décadas atrás, acompanhado de uma bela jovem, quando ele ainda não havia se tornado um recluso e sua mãe ainda alimentava sonhos de avó. Para quem nascera numa pequena cidade ao norte da não muito maior Humahuaca -para onde a família se mudara pouco antes da morte do seu pai-, penetrar as entranhas do pássaro metálico já fora um desafio; e, uma vez lá dentro, a agonia não se amenizou por nenhum momento. Por mais que as aeromoças tentassem enganá-lo, aquele zumbido intermitente era, para ele, um claro indício de havia algo errado -de que havia algo muito errado- com o aparelho. Sentiu, aterrado e impotente, o violento sacolejar do avião durante as incontáveis turbulências que a aeronave atravessara. A aterrissagem foi uma sensação apavorante. A experiência fora tão desagradável que quase se arrependeu da empreitada. Se tivesse recursos para se manter naquele país tão distante e tão diferente do seu, talvez nunca mais deixasse a Escócia. Ao menos, não a bordo de um avião; cogitava seriamente abreviar em vários dias sua estada na Escócia para empreender, no retorno à Argentina, uma demorada viagem de navio. Foi para o albergue previamente reservado, recuperou-se por uma hora, tomou um demorado banho, vestiu seu novo terno, calçou seus novos sapatos e saiu para conhecer a bela Edimburgo, capital do país. Admirou, deslumbrado, a Igreja Tollbooth Kirk, uma belíssima edificação em estilo gótico, com setenta e três metros de altura, construída em 1844. Ficou imaginando como seria Humahuaca em 1844; lamentou profundamente a diferença entre estas belas ruas, completamente limpas e organizadas e seus incontáveis banheiros públicos, limpos e gratuitos, e as de sua cidade, onde predominavam as vielas poeirentas de piso irregular e as calçadas cheias de rachaduras e invadidas pela erva e pelas fezes de cães sem dono. Caminhou descendo a Princess Street, pensou em parar num daqueles refinados cafes para saborear um capuccino com bombas de chocolate, mas pensou que provavelmente isto seria um luxo demasiado caro para seus limitados recursos. Contentou-se com um mingau de aveia numa lanchonete modesta. Retomou o passeio. Seus pés doíam um pouco, apertados pelo couro duro e ainda não flexível de seus sapatos novos. Mesmo assim, continuou andando até se deparar com a magnífica visão do Castle Rock, o Castelo de Edimburgo, antiga fortaleza erigida no Século VII e em torno da qual a cidade se desenvolveu. Embevecido, contemplou as estátuas dos dois heróis escoceses, William Wallace e Robert Bruce, que guardam solenes a entrada do portentoso castelo. O orgulho de uma nação que conquistou a independência pela força dos próprios braços está indelevelmente gravado em pedra sobre os portões do castelo: Nemo Me Impune Lacessit, diz a ameaçadora inscrição; ninguém me ataca e sai impune. As estátuas o transportaram a um tempo em que as highlands eram ainda mais altas, mais geladas e mais duras, os homens eram ferozes e as mulheres, feitas de rude determinação; tempo de sangue, lágrimas, aço e glória. Um tempo de gigantes. Depois de um dia inteiro de caminhada e longas contemplações, estava faminto. Entrou num restaurante que lhe pareceu modesto, e portanto condizente com sua condição de turista latino-americano; estava certo. Optou por uma cullen skink, sopa de bacalhau com cebolas; a sopa lhe pareceu sofrível; a milenar cerveja escocesa a tornou mais palatável. Concedeu-se uma pequena -para ele- extravagância: pediu cranachan de sobremesa. A mistura de creme, frutas silvestres, mel e uísque estava realmente deliciosa; após desfrutar desta refeição verdadeiramente nativa, sentia-se quase escocês, a ponto de beber mais duas cervejas acompanhadas de uma dose de scotch. Sentindo a cabeça leve e um princípio de euforia, pagou a conta, deu ao garçom uma pequena gorjeta e retornou ao albergue. Sonhou durante toda a noite com antigos e inexpugnáveis castelos, terríveis cavaleiros em reluzentes armaduras, hordas de bárbaros sanguinários (numa confusão imperdoável de eras que, contudo, é absolutamente plausível e normal nos sonhos), diáfanas princesas donzelas e, sim, dragões: na Escócia do seu sonho, havia enormes dragões; mas eles não cuspiam fogo, e sim, jatos medonhos de cullen skink...

paulo marreco
Enviado por paulo marreco em 28/11/2011
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