E eu nem percebi o tempo

E EU NEM PERCEBI O TEMPO

Noite escura, o estômago arde, o esôfago queima, o peito inquieta-se, um grande mal-estar se apodera de mim, um apito rompe o silêncio, é meia noite e a primeira ronda do guarda-noturno. A suavidade faz-se presente no semblante de minha esposa que, ao meu lado, deixa escapar um leve ronco, o sono é profundo. Agoniado pelo mal-estar, levanto-me, vagarosamente, porque poderia, num movimento súbito, tirar-lhe o suave semblante ou roubar-lhe o sono profundo. Caminho lentamente até a cozinha, pego a chaleira encho-a de água e ponho a ferver. O fogão eu acendi com um palito de fósforo senão, a evolução tecnológica com seu alto ruído, certamente interromperia àquele leve ronco. Fui educado para não importunar aos meus semelhantes e muito menos aos diferentes. Também, nenhuma lâmpada eu acendi, pois inevitavelmente a claridade poria fim à suavidade do descanso de minha esposa e perderia toda ternura que me dava forças para resistir a queimação do estômago. A água havia fervido, enquanto a luz do luar, sem saber, entrava pelas vidraças e me permitia localizar os utensílios que precisava. Enchi a bolsa de borracha com a água quente e voltei, da mesma forma que saí, cautelosamente, para me recostar e continuar a luta, ali ao lado de quem me dava forças, afinal de contas, aprendi na infância, que os homens jamais se rendem, são guerreiros natos.

Um dos cachorros da vizinhança começa a latir, provavelmente, um gato atravessou o seu quintal e, no mesmo instante em que um carro passa em alta velocidade, eu resisto a queimação, minha esposa pára de roncar, seu semblante continua sereno e lindo, afinal essa fisionomia foi quem me aprisionou nas teias de um amor eterno. Quanto é cruel esse mal-estar e ela linda.

Outro apito irrompe o silêncio da madrugada, é a segunda ronda do guarda-noturno, o cachorro parou de latir, um pesado caminhão passa pela rua e minha cama trepida, a angústia ainda me domina, o mal-estar permanece, mas a queimação diminuiu e ela continua linda.

Finalmente, o relógio desperta, o dia tenta irromper, a queimação do estômago não mais me incomoda nem o mal-estar. Parece que tudo foi absorvido pela escuridão e a luz do sol chegou para me deixar alegre e bem disposto. A responsabilidade e o trabalho exigem, não só a minha presença, também muita vontade de vencer os obstáculos de um novo dia.

Cumprindo rituais diários, beijo a tez facial da beleza que me seduziu, e vou ao banho matinal. Ao sair do banho, passo pela ternura do andar macio da minha paixão e arriscando um fortuito olhar, vejo o balançar ritmado nos seus quadris, um verdadeiro convite para esquecer da hora, uma absurda sensação de fazer tudo, enrolar-me em seus cabelos e braços chegando ao máximo da expressão da vida, a forma mais agradável que Deus resolveu nos presentear para perpetuarmos. Ao menos é o que até hoje imaginamos. Porém, na maioria das vezes, a vontade é vencida pela razão e esta, não foi uma exceção.

Assim, concluo mais um dia de labuta e lutas, vitórias e derrotas, alegrias e desenganos, tudo como deve ser, sem constrangimentos ou ressentimentos, apenas aceitando os fatos e desafios.

Quando os zéfiros da tarde trazem minha vontade de rever a beleza da paixão deixada à porta, entre lábios úmidos que se encontravam, sabendo que estavam se afastando, cada minuto passa a ser observado pela angústia que corrói meu peito e pressiona o coração já acelerado em suas batidas e me questiona quanto ao rigor da responsabilidade no cumprimento dos meus deveres. Enfim, os ponteiros conseguem ultrapassar o marco das 10 voltas e o velho relógio me libera. Permite que volte ao aconchego do amor e até, quem sabe, alcance a felicidade plena daquele momento em que peles e pelos roçam, deslizando sobre as sensações máximas de um prazer incontido, saudável e puro.

Retorno ao lar e sou recebido pelas mãos macias que inebriam ao me percorrer o corpo, e também, ao preparar o tal jantar da noite anterior, me condenaram a parceria das rondas do guarda-noturno e as sinfonias dos uivos de um cão, me causam desconfortos e um mal-estar soberbo.

Tudo na vida é passageiro, como eu no trem que, dia-a-dia, no leva e trás, deixa nos trilhos sempre novos fatos. Hoje, não irei jantar, dedicar-me-ei à paz, trocando o cão irado e o guarda noturno, por momentos em que o amor sublime se apresentará entre beijos úmidos e leves roncos, não de sonhos meigos, porque a queimação de agora é só no peito e as labaredas, certamente, me alcançarão a alma, devido à insistência daquelas mãos macias, enquanto no rosto lindo estará evidente a expressão suprema, e o prazer maior, na luta pela perpetuação do próprio ser.

Assim, a vida continua, por tempo limitado e com inseguranças, porquanto a face linda que expressa a paz, capaz de enfeitiçar meu coração perdido, também é limitada no existir do tempo e há de separar os lábios úmidos e ávidos das despedidas matutinas ou se tornar um novo fato nos trilhos do trem que, nesse dia, não estará me transportando.

Não há como saber se o fato novo permanecerá nos trilhos ou repousará nos sonhos meigos entre suaves roncos, mas, inevitavelmente, o desconforto e o mal-estar, queimarão no peito daquele que verterá em suas lágrimas a comprovação de que o amor existe, que a paz e felicidade são efêmeras, porém, ainda assim, a vida resplandece por um certo tempo.Por quê?

Porque apenas as razões do próprio peito e a lógica do instante da partida, serão verdades independentes como as justificativas, na exata proporção da racionalidade e sanidade de cada mente. Envolto nas delícias do amor e flutuando nas nuvens da ilusão, nem percebi o tempo...