O filho do defunto

O FILHO DO DEFUNTO

Marcos era um menino muito esperto e, desde muito cedo, demonstrava grandes aptidões nos trabalhos manuais que aprendeu praticamente sozinho. Órfão de pai e aos seis anos de idade, abandonado pela mãe que arrumara um novo companheiro, o menino acabou por encontrar abrigo na casa do seu Júlio, um senhor de seus cinqüenta e poucos anos, viúvo, que morava numa pequena casa dentro do cemitério, aonde trabalhava de vigia e realizava serviços externos.

Benedito, Aldo e Bernardo eram coveiros e cuidavam dos túmulos, carpiam o mato e realizavam outros trabalhos indispensáveis à manutenção adequada do cemitério.

Vilma cuidava da casa de seu Júlio, da comida e dos uniformes dos coveiros. Outras pessoas trabalhavam no local como: o Baltazar, funcionário da prefeitura e administrador do cemitério.

Uma cidade até então pacata, começava a experimentar as influências do capitalismo, o caso do menino Marcos, era inédito.

Certo dia, sob um forte sol de verão, seu Júlio saía da agência bancária e, ao se dirigir para o ponto de ônibus, foi parado por Marcos o qual lhe disse:

- Tio, meu pai morreu e minha mãe me abandonou, não sei o que vou fazer nem onde ficar!

- Mas menino, aonde você morava antes de sua mãe te abandonar?

- Era muito longe daqui, não sei o nome do lugar! Ontem mamãe me trouxe aqui, com seu namorado, e disse que iria embora com ele. Falou também que eu pedisse as coisas que precisasse para as pessoas vestidas com roupas bonitas. Fiquei com muito medo. Não consegui dormir e passei a noite perto daquele bar, (apontou com o dedo indicador para o outro lado da praça). Lá, estava claro e tinha uma porção de gente falando alto.

- Como é o seu nome, menino?

- Marcos

- Marcos de quê?

- Não sei!

Júlio então pegou Marcos pela mão e disse-lhe:

- Vamos para a minha casa, depois que você tomar um banho e comer, vamos conversar e saber o que fazer. É o único jeito de se concertar essa situação. Ademais, devo voltar ao trabalho e certamente não conseguirei ficar tranqüilo se deixá-lo aqui no meio da rua, numa cidade a qual está se torna cada vez mais violenta, aliás, como tantas outras desse nosso “maravilhoso” Brasil.

Com seus seis anos de idade, Marcos não ofereceu nenhuma resistência, ainda mais porque estava apavorado, perdido na cidade e às margens da resistência ao sono e fome, como muitas outras crianças abandonadas por esse País afora, infelizmente.

Depois de uma curta viajem de ônibus, chegaram ao cemitério e ali, Marcos sentiu-se mais inseguro ainda, porém com calma e a habilidade daqueles que já passaram por muitas situações adversas, que esse mundo a tantos impõe, Júlio explicou ao menino que ali morava e trabalhava, já que era o vigia do cemitério.

Após um reconfortante banho, Marcos vestiu-se com a mesma roupa, sentou à mesa com Júlio e “tirou a barriga da miséria”. Aproximava-se das 13 h e Júlio precisava voltar ao serviço. Deixou o menino deitado no sofá da sala, recomendou-lhe que dormisse um pouco e também o esperasse voltar lá pelas cinco e meia da tarde. Cansado, já confiando no novo companheiro, Marcos não resistiu por muitos minutos, entregou-se ao deleite de um sono reparador.

No fim da tarde Júlio retornou à sua casa e encontrou o menino dormindo. Com cuidado e evitando fazer barulhos desnecessários, tomou banho, barbeou-se como de costume, trocou a roupa e foi cuidar do jantar. Com o barulho das panelas e talheres, Marcos acordou e ainda sem entender muito bem o que se passava, foi até a cozinha e perguntou:

- Seu Júlio e agora, o que vou fazer?

- Nada! Por enquanto você vai jantar, depois vamos conversar bastante e só amanhã iremos atrás de saber quem és, donde vens, quem são seus pais e uma porção de outras coisas.

- Mas a minha mãe é a Cilene! Só o meu pai é que mamãe dizia ter morrido antes de eu nascer e não podia dizer o nome dele ainda. Que eu tinha que ficar grande primeiro.

- Então, Marcos, qual era o resto do nome de sua mãe?

- Isso eu também não sei!

- É por esta razão que vamos ter que procurar muito até encontrar o nome inteiro de seus pais. Entende?

- Ah! Agora lembrei, quando mamãe me deixou lá na rua, botou esse papel no meu bolso e disse que o entregasse à pessoa que ficasse comigo. Tome o papel seu Júlio.

Pegando o papel com certa ansiedade, Júlio que acreditava estarem ali todas as respostas para suas dúvidas, acabou decepcionado porque jamais poderia imaginar que, em tão poucas palavras, sobrasse em suas mãos, um problema tão grande.

Depois de saber que Marcos não tinha registro de nascimento e era filho dela com um importante homem, morador da cidade, falecido num acidente inusitado, na véspera do nascimento de Marcos; que Cilene era um nome fictício porque já era casada, naquela época, não podia tornar público aquele fato, já que seu esposo falecera no dia em que o menino comemorava três anos; a Cilene ainda acreditava que deixar o menino na cidade aonde viveu seu pai, seria a melhor forma de quem sabe, um dia, ele encontrar suas verdadeiras raízes. Júlio ficou mais intrigado ao terminar de ler o bilhete, pois entre parênteses e ainda grifado, estava a seguinte frase: “Certamente, no futuro arrepender-me-ei do que estou fazendo mas, você que assumiu meu filho, esteja certo de que jamais irei procurá-los, pois conheço sobejamente o quanto doem as atitudes impensadas e também o verdadeiro sabor da infelicidade. Carregar sobre os ombros o peso dos meus erros e a eterna dúvida sobre o futuro desse meu filho, é o castigo que me imponho enquanto viver”.

Diante de tanta confusão, Júlio explicou para o menino que ali estava escrito o nome de sua mãe, apenas Cilene, e ela pedia para quem o encontrasse, que cuidasse bem dele, só isso.

Ainda sob o impacto do medo que passara durante toda à noite, Marcos, prontamente, respondeu que poderia ficar com ele.

Embaraçado e sem ter como negligenciar, Júlio fez um gesto de concordância, mas explicou que outras coisas precisavam ser verificadas, já que até lá ele poderia ficar morando ali.

O tempo passou, ninguém procurou pelo menino, nenhum registro foi localizado nos cartórios da região e Júlio afeiçoava-se, cada dia mais, a Marcos. No ano seguinte, Júlio procurou uma escola do município para matricular o menino e deparou-se com o primeiro problema. Teria que ter a certidão de nascimento e responsabilizar-se por ele. Assim, depois de explicar a situação para Marcos, foi até o cartório e registrou-o como seu próprio filho, e visto que a mãe era falecida. O menino passou a chamar-se Marcos Boaventura Neto, por mera coincidência, Marcos também era o nome do pai de Júlio.

Na escola, o menino era admirado pelos professores e professoras por seu entusiasmo, alegria e muita vontade de aprender. Também os colegas, tanto da escola como do bairro gostavam bastante de Marcos, principalmente, por sua simplicidade e honestidade. Era um menino muito sincero e não tinha nenhum receio de contar sua vida para tantos quanto conhecia. Esse modo de ser é que lhe valeu o apelido de “o filho do defunto” porque todos sabiam que seu pai havia falecido antes que nascesse e também que na sua certidão constava que a mãe já havia morrido.

Os anos corriam normalmente, o então pré-adolescente Marcos, de ótima índole, tinha um relacionamento maravilhoso com Júlio, inclusive causava inveja a todos quanto com eles conviviam.

Ótimo aluno e com incrível habilidade manual, Marcos confeccionava e pintava vasos de cerâmica, além de pequenas jóias fantasia, que vendia na escola e na porta do cemitério nos fins de semana. Além de arcar com todas as suas despesas de passagem e material escolar, ainda passava às mãos de Júlio, ao qual já chamava de pai, a maior parte de seus lucros. Preocupado por estar com mais de sessenta anos, Júlio abriu uma poupança para Marcos aonde foi depositando todo o dinheiro que lhe era repassado, centavo por centavo, sem que ele soubesse.

Benedito, Aldo e Bernardo, os coveiros do cemitério, passaram a ser tios de Marcos, já que o Aldo e a Vilma, cuidavam da casa de Júlio, da comida e das roupas, casaram e tornaram-se padrinhos de crisma do menino.

Baltazar, administrador do cemitério e funcionário da prefeitura, deixava Marcos circular à vontade pelas dependências da sede e inclusive dedicava parte de seu tempo vago, ensinando-lhe a procurar fichas no arquivo, digitação e noções preliminares de computação.

O que não saía da cabeça de Júlio, era descobrir o verdadeiro pai de Marcos, pessoa influente na cidade o qual teria falecido em acidente inusitado, conforme descrito por aquela mulher de nome falso. Pensava:

- Se o amante da falsa Cilene morreu na véspera do nascimento do menino e seu verdadeiro marido, faleceu no dia em que Marcos fez três anos, fica evidente que o finado “partiu desta para uma melhor” pensando ser o pai do menino. Se o “corno” foi enterrado quando o menino tinha três anos e a Cilene já estava separada do marido, fica óbvio que o acidente que vitimou o pai genético do menino só poderia ter ocorrido num daqueles dois anos. Se ao fugir com o novo namorado, resolveu deixar o “filho do defunto”, na cidade aonde viveu o seu verdadeiro pai, quis de alguma forma deixá-lo por perto de sua origem... Para ter uma aventura com o pai de Marcos, era evidente que Cilene tinha algum motivo ou alguma coisa fazia naquela cidade, permitindo que conhecesse esse homem importante... Que para chegar a ponto de engravidar, foi preciso um certo tempo de relacionamento. Com esse ponto de partida, Júlio começou as suas investigações particulares.

Anos a fio procurava nos velhos jornais de toda região e nas rádios, possíveis notícias sobre acidentes que tivessem ocorrido naqueles dois anos, para ele, misteriosos. Também não se furtou de, em suas conversas com amigos e conhecidos, sempre perguntar se sabiam de algum fato inusitado ocorrido na cidade o qual tenha vitimado alguém importante como um grande empresário ou profissional de destaque. Conforme os anos corriam, mais difícil seria deslindar o fato, ainda mais porque com o crescimento da cidade, do próprio Marcos, das novidades e das circunstâncias criadas por novos tempos, todo interesse sobre o passado, inevitavelmente, se diluiria nas agitações da vida contemporânea.

Muito incentivado por Baltazar, ele estava concluindo o curso de Engenharia e Arquitetura, numa cidade vizinha e já trabalhava na administração do cemitério como contratado, podendo assim custear seu curso universitário.

Um dos seus tios postiços, o Benedito, aposentado, para complementar os seus vencimentos, trabalhava na portaria de um novo e famoso hotel construído na praça central da cidade, aonde eram realizados os eventos mais importantes da região.

A praça depois de reformada ficou com uma bela fonte luminosa bem ao centro, canteiros floridos e perfumados, além de um majestoso coreto aonde, todos os fins de semana, eram apresentados os artistas e músicos da cidade. Também era sombreada por árvores de magníficas floradas e tinha o calçamento em mosaico português. Um parque infantil protegido por grades, permitia às mães com filhos pequenos, assistirem com tranqüilidade todas as apresentações e eventos realizados no coreto. Com sistema de som colocado em cada poste de luminária, as pessoas que transitavam pela praça, desfrutavam de lindas melodias. Contornando a praça, as edificações se multiplicavam com vários andares, lojas renomadas, praças de alimentação sofisticadas, shopping e o luxuosíssimo Hotel Prince, pertencente ao senhor Abib Assad, um sírio muito alegre, que se instalou com toda família na promissora cidade.

Com a chegada do capital externo, a instalação de novas indústrias e a multiplicação das casas comerciais, a geração de empregos foi tão satisfatória que não havia sequer uma pessoa, com mais de dezessete anos, desempregada naquela cidade.

Benedito, educado, tranqüilo e discreto, conquistou a simpatia do Abib e foi trabalhar no Hotel Prince, aonde também conquistou a tantos quanto ali se hospedaram. Certa vez, ocorreu um roubo de jóias no apartamento de um dos mais importantes hóspedes do hotel e o fato só foi esclarecido devido às características de honestidade de Benedito e a argúcia do Marcos.

O ladrão, ao saber da viagem do ricaço para aquela cidade, hospedou-se no hotel, uma semana antes de sua vítima, evitando levantar suspeitas com sua presença. Isso porque, toda a vez que o hotel recebia uma convenção, cuidava de verificar com maior atenção os novos clientes, que recebia nos três dias os quais antecediam o evento.

Na manhã do segundo dia da convenção, o ricaço deu por falta de suas jóias e imediatamente chamou o dono e gerente do hotel, o seu Abib. Depois de muito conversarem, concluíram que o melhor seria não alarmar. Discretamente entraram em contato com a delegacia de polícia e um dos detetives foi se hospedar no hotel porque nos últimos cinco dias nenhum cliente havia deixado suas acomodações, assim, o provável ladrão ainda estaria lá ou seria um funcionário do hotel, pois não houve nenhum arrombamento. Além do mais, uma pasta de couro cheia de dólares, deixada sobre a mesinha–de-cabeceira ou qualquer outro pertence, igualmente valioso, foi subtraído.

Depois de muita averiguação, interrogatório dos funcionários e campana dos hóspedes, nenhuma suspeita concreta pôde ser observada. Então, o seu Abib começou a desconfiar do próprio ricaço, que poderia estar simulando o roubo e assim tirar proveito da situação. Como agir nessa hora? Perguntava-se. Resolveu contar para o detetive e tentar alguma pista sobre aquele caso inusitado. Depois dessas informações, o detetive passou a ter encontros seguidos, com o ricaço, usando várias estratégias de que era conhecedor, para detectar algum deslize que trouxesse uma pista concreta. Como nada conseguiu, explicou ao dono do hotel, já que a convenção terminaria no dia seguinte, que talvez fosse uma boa saída e até interessante tentar um acordo com o ricaço, preservaria dessa forma o conceito do hotel, sua credibilidade e segurança, tão propalados nos meios de divulgação. Diante do fato, Abib ficou numa bela encruzilhada e sem saber que rumo tomar. Lá, pelas duas da madrugada, com a cabeça estourando, ele foi até a portaria e desabafou com o Benedito, seu confidente e única pessoa que ficou fora das investigações por sua própria determinação. Como sempre, Benedito procurou acalmar o patrão com palavras de esperança, comprometeu-se a ajudá-lo e ainda lhe repreendeu por não ter mandado o detetive averiguá-lo, ainda mais sendo ele o responsável pela portaria, aonde todos passavam. Ali, ficaram por mais de uma hora. Pela manhã, ao deixar o hotel, Benedito encontrou-se casualmente com Marcos e contou-lhe o ocorrido. Marcos pediu ao tio que tentasse lembrar de todos os fatos ocorridos na portaria até o dia do roubo. Benedito fez uma expressão exclamativa e disse:

- Estou matutando, mas nada de importante aconteceu nos dias que antecederam ao roubo das jóias. Marcos insistiu, lembre de alguma coisa ou de alguma pessoa que lhe tenha pedido algo diferente dos fatos do cotidiano!

- Estou tentando... Deixe-me ver...A única coisa diferente que ocorreu foi que um dos hóspedes me ofertou uma caixa de bombons e pediu-me para guardar outra e entregar ao seu irmão, com o qual combinou de pegar comigo na semana que vem, na quinta ou sexta-feira.

- Apesar de ser uma desconfiança pouco consistente, acredito que essa possa ser uma pista e, portanto, não deverá ser descartada. Pense comigo. Se no lugar dos bombons, estiverem dentro da tal caixa, as jóias do hóspede lesado? Pior que a difamação do hotel, seria o Abib fazer o pagamento de uma indenização indevida, pois estaria admitindo ter sido irresponsável ao não solicitar os valores do hóspede para guardar no cofre do hotel. Nesse caso, já que o Abib aceitou a condição, tente convencê-lo de averiguar o fato. A bem da verdade é a única pista existente.

- Olha Marcos, você tem razão. Não ficaria sossegado se desprezasse essa pista e tivesse que carregar pela eternidade o peso da omissão.Voltarei ao hotel e conversarei com o Abib.

Percebendo o sofrimento do patrão, depois de recomendações e compromisso de sigilo, contou-lhe o fato ocorrido dias atrás e por sugestão do Marcos, deveria ser averiguado.

Imediatamente Abib perguntou-lhe:

- Onde está a caixa de bombons?

- Em minha casa. Porém, nem pense que vou abri-la ou trazê-la antes da quinta-feira, dia a partir do qual virão buscá-la.

Depois de muito diálogo e de comum acordo, arquitetaram um plano do qual, só os dois saberiam, mais ninguém poderia sequer imaginar o que estavam armando.

Na manhã seguinte, sem que ninguém percebesse, prepararam cuidadosamente todos os detalhes.

Após o almoço ao chegar no hotel, o detetive procurou pelo seu Abib com a finalidade de saber o que tinha resolvido, sobre o que haviam conversado no dia anterior. Dizendo-se sem outra opção o dono do hotel achou melhor concordar com a indenização, apesar de achar uma posição estranha, para uma pessoa honesta como ele. Acertaram o valor da indenização proposta pelo ricaço, único capaz de avaliar o seu próprio prejuízo e, apesar de chateado, além de espantado devido ao alto valor solicitado, não poderia contestar, caso contrário a última saída, seria abrir um inquérito policial, fazendo a citação de todas as pessoas hospedadas e funcionários o que desmoralizaria o hotel, obrigando-o a fechá-lo e abandonar a cidade.

Como a convenção encerraria às quatro da tarde e os hóspedes que para ela vieram, deixariam o hotel em ônibus fretado pelas dez horas da noite, combinou com o detetive e com o ricaço que o pagamento da indenização seria em dinheiro, às nove horas da noite.Todos cumpriram o trato.

No dia seguinte, uma segunda-feira, seu Abib estava cabisbaixo, porém, não podia demonstrar sua insatisfação, ainda mais que o plano traçado com o Benedito, conforme as orientações de Marcos estava em curso e transcorrendo como combinado.

Na terça-feira por volta das dez horas da manhã, o hóspede das caixas de bombons, dirigiu-se à portaria e pediu ao Benedito que fechasse sua conta porque teria que viajar ainda àquela tarde. Uma hora depois se retirou do hotel, fazendo questão de deixar uma gorjeta e abraçar o Benedito, lembrando-lhe que na quinta ou sexta-feira, seu irmão viria pegar a caixa de bombons.

Na quarta-feira, ainda com as orientações do esperto Marcos, Benedito e seu patrão foram à delegacia e conversaram com o Delegado em sua sala reservada, contando todos os detalhes dos acontecimentos sobre o roubo das jóias, inclusive da estranha proposta do detetive que fez as averiguações, segundo o entendimento de Marcos. Contaram o que tinham arquitetado e todo acompanhamento que fizeram através de filmagens e gravações das conversas, mas de nada serviriam no caso dele não interferir para que a caixa de bombons pudesse ser aberta.

Ainda sob o impacto da proposta feita pelo detetive que ele havia indicado para acompanhar e averiguar o caso, o Delegado informou-lhes que iria pessoalmente acompanhar a entrega da caixa tão logo a pessoa chegasse para retirá-la, que ligassem em seu celular e mantivessem a pessoa aguardando por uns dez minutos, dando-lhe o tempo para chegar no hotel.

Quinta-feira nada aconteceu, porém ao fim da tarde de sexta-feira lá estava a pessoa à procura do Benedito.

Conforme haviam combinado, o dono do hotel foi quem ficou na portaria esses dois dias porque, assim, ganharia tempo enquanto “tentava localizar” o Benedito e também para acionar o Delegado.

Quando o Benedito chegou, a pessoa apresentou-se como Jorge Passaredo, nome dado pelo hóspede do hotel, como sendo o do seu irmão. Enquanto Benedito saiu alegando que iria buscar a caixa de bombons, o Delegado já havia chegado ao local, colocou-se próximo ao balcão e pediu ao seu Abib, um apartamento para pernoitar-se.

Depois que Benedito entregou a caixa de bombons, Jorge agradeceu e ia se retirar quando foi obstruído pelo delegado, que após se identificar, solicitou que Jorge abrisse a caixa de bombons sobre o balcão, que sabia ser desagradável, mas essa ação fazia parte de uma investigação sobre um roubo ocorrido naquele hotel.

Sem outra saída, Jorge atendeu a ordem do Delegado. Pronto, ali estavam as jóias e não os bombons. Tudo esclarecido e confirmado por Jorge, falso irmão do tal hóspede que foi posteriormente localizado e processado juntamente com o detetive, este sim, o verdadeiro irmão do hóspede.

Depois contataram ao ricaço, entregaram todas as jóias e receberam de volta o valor da indenização.

Após a sua formatura, o jovem Engenheiro Arquiteto Marcos Boaventura Neto, foi admitido em concurso público junto à Prefeitura Municipal, juntamente com outros profissionais, pois o desenvolvimento acelerado da cidade exigia além dos recursos financeiros, principalmente, os recursos humanos para viabilizar o atendimento da demanda. Também o crescimento populacional forçou a criação de muitas frentes de trabalho e infra-estrutura que atendessem às áreas de: saneamento básico, ensino, saúde, habitação, entre outros.

Um dos empreendimentos que exigia urgência era a reestruturação, ampliação e reforma do Cemitério Municipal que ficou obsoleto diante do crescimento populacional. Esse projeto foi o primeiro trabalho que ficou sob a responsabilidade do recém contratado Engenheiro Marcos Boaventura Neto, assessorado pela economista Melissa dos Reis, admitida no mesmo concurso.

Assim, o “filho do defunto” iniciou sua vida profissional e também um namoro com a jovem economista Melissa, com quem trabalhava.

Num certo dia, quando realizava medições no terreno do cemitério, o “filho do defunto” lembrou-se perfeitamente daquela cena, daquele local, que teria estado ali com sua mãe Cilene, oportunidade em que ela depositou algumas flores num jazigo. Como estava executando trabalhos, juntamente com outros funcionários, não pôde concentrar a sua atenção naquele fato.

Ao retornar para casa, ao fim do expediente, o “filho do defunto” comentou com Júlio o ocorrido.

- Marcos será que você conseguiria reconhecer o jazigo em que sua mãe depositou as flores?

- Se algo não mudou, acredito que sim, tenho uma vaga lembrança de que sobre a lápide de mármore branco existia uma cruz dourada e uns dizeres também em dourado.

- Então, amanhã levantamos mais cedo e vamos até o local tentar localizar o jazigo, combinado?

- Certo pai!

No dia seguinte, foram ao tal local e em poucos minutos o “filho do defunto” localizou o jazigo com sua lápide de mármore branco, a cruz e os dizeres dourados.

- Você tem certeza disso, Marcos?

- Sem dúvida nenhuma. É este o túmulo. Afinal de contas, eu já estava com cinco anos!

Estupefato Júlio olhou para Marcos e disse-lhe:

- Como podes ver, aqui estão os restos mortais do Padre Alcides Rebelo de Almeida , pároco de nossa Matriz por mais de vinte anos.

- E daí pai, porque essa cara de espanto?

- Daí? Veja a data do sepultamento e a data do seu nascimento, são bem próximas!

- Olha filho, o Padre Alcides teve uma morte inusitada ao cair da torre do sino da Igreja e fraturar o crânio. Esse fato mais as datas coincidentes me levam a acreditar que podes ser filho do pároco, pois tudo se encaixa perfeitamente e de acordo com os dizeres da carta deixada por sua mãe Cilene.

- Só me faltava essa! Não é possível!

- Nem impossível! Ademais esta é a única pista, com certa lógica, que temos de sua origem. Afinal? Você quer saber ou não, quem tu és?

- Claro, pai!

- Então, vamos tomar as providências legais e fazer, em sigilo, um exame de DNA. Assim acabamos com essa dúvida, caso contrário, a busca continua.

- Passados cerca de quarenta dias, foram pegar o resultado do exame, no laudo, a comprovação, Marcos era realmente filho do Padre Alcides.

Após o primeiro impacto, vendo Júlio com lágrimas nos olhos, Marcos abraçou-o e disse-lhe:

- Pai, nada mudou entre nós. Deixe de bobagens.

Passaram-se alguns meses. A vida continuou normalmente até que Marcos resolveu pedir Melissa em casamento. Foi uma festa muito bonita e já esperada por todos que os conheciam, pois formavam um casal perfeito, sempre unidos no serviço e no cotidiano.

Ao saírem para a viagem de núpcias, um imprevisto acidente deixou Marcos em coma por vários dias enquanto Melissa não resistiu ao impacto da batida do carro contra o caminhão. A fatalidade insistia em acompanhar o “filho do defunto”.

Tendo ficado com os movimentos das pernas comprometidos, segundo os médicos, ele precisaria fazer um transplante de medula e algumas transfusões de sangue. Aí, começou uma enorme campanha na cidade em busca de doadores compatíveis. Entre tantos que se dispuseram a ajudar Marcos, apenas Vilma, esposa do tio Aldo, que trabalhava na casa de Júlio, era compatível. Após todos os exames de rotina, o transplante foi realizado com pleno sucesso e Marcos recuperou-se muito bem, voltando às suas atividades, mas a partir daí, permanentemente, muito triste.

Não bastassem tantos fatos desagradáveis, Vilma é encontrada morta, vítima de suicídio por envenenamento, sem nenhuma explicação, pois Aldo, seu marido, comentava que ela estava muito contente por ter ajudado a salvar o Marcos.

Após o sepultamento de Vilma, Júlio é chamado ao hospital aonde numa reunião com a junta médica que tratou de Marcos, toma conhecimento de que Vilma era a mãe genética do “filho do defunto”, o fato foi descoberto através dos exames realizados para o transplante, que ela havia confirmado pedindo-lhes absoluto sigilo. Também deixou uma carta para que lhe entregasse exatamente naquele dia, o que ninguém poderia supor é que ela estava planejando tirar a própria vida, em vez de enfrentar aos fatos.

Júlio pegou a carta, agradeceu aos médicos todos seus esforços em favor de Marcos, a discrição e sigilo que mantiveram, e retirou-se.

Chegando em casa, conforme o pedido de Vilma, ele abriu a carta e pôs-se a ler: “Prezado Júlio, saiba que minha admiração e respeito pelo senhor são incalculáveis, quer como patrão ou como pai do meu filho. Antes de trabalhar em sua casa, trabalhei por um tempo na Paróquia, aonde conheci e acabei me envolvendo com o Padre Alcides. Quando engravidei, deixei a cidade e fui morar longe daqui, não importa onde. Lá, conheci essa pessoa que se denomina Cilene e de quem fiquei muito amiga. Como precisava ganhar o suficiente, para me sustentar e ao Marcos, fui trabalhar em sua casa, no cemitério, enquanto Cilene cuidava do menino. Quando ela resolveu mudar com seu namorado para outra cidade, combinamos deixar o Marcos por aqui, porque dessa forma, poderia acompanhá-lo por todo o tempo e observar os acontecimentos. Quis o destino que exatamente o Senhor o encontrasse e isso foi muito bom (só para mim) porque tinha meu filho por perto. Por outro lado, a angústia de não poder nem ter forças para enfrentar a realidade, causou-me um terrível sofrimento. Depois que Marcos se acidentou, ao me apresentar para salvá-lo, sabia que tudo seria esclarecido e entendi porque Deus ainda não havia me castigado e também o porquê deveria imediatamente apresentar-me ao Onipotente. Esse ato de covardia foi o caminho mais curto que encontrei para pôr fim ao meu sofrimento e de tantas pessoas que acabei envolvendo com minha insensatez. Senhor Júlio, o “filho do defunto” é exclusivamente seu. Peço-lhe perdão. Adeus, Vilma.”

Com uma carga excessiva de emoções, o coração de Júlio entregou-se a um enfarto fulminante, exatamente na véspera do aniversário de Marcos que, além de nunca ter tomado conhecimento da carta e, por ironia do destino, a partir daquela data seria, em todos os sentidos, apenas “o filho do defunto”.