+No desvão da casa n°37

NO DESVÃO DA CASA N° 37

Naquela rua de bairro proletário, os moradores eram pessoas comuns e suas famílias mantinham um relacionamento à moda antiga. Nos fins de tarde, algumas senhoras enquanto aguardavam a chegada de seus maridos, conversavam sobre seus filhos, serviços e muitas outras coisas do dia-a-dia de uma dona de casa. Tudo muito tranqüilo, sem grandes preocupações ou mesmo ambições, visto que os homens residentes naquela rua, eram empregados de uma grande indústria localizada num bairro próximo e seus ganhos suficientes para manter uma família sem grandes percalços. Como se diz na gíria, dava para o gasto.

Algumas crianças eram mais conhecidas pelas suas façanhas ou virtudes individuais que promoveram no bairro. Reinaldo cantava muito bem, Mercedes era ótima desenhista, Mário um futebolista reconhecido no time do bairro, Teófilo tocava piano, Marília era muito prendada e fazia lindas peças de tricô e crochê, outros apresentavam suas características particulares. Porém, um terrível acontecimento deixou a rua estarrecida.

Joel e sua esposa Vânia, pais de Reinaldo e Marília, moravam na casa 28 e tinham uma grande amizade com a família de Mercedes, irmã do Mário e com os pais de Teófilo, Armando e Denise, moradores da casa 32.

Geraldo e Cíntia, pais dos gêmeos Mário e Mercedes, moravam na casa 37 e, embora fossem um pouco introvertidos, também se relacionavam bem com os demais.

Nos fins de semana os moradores do bairro organizavam atividades para envolverem os seus filhos em competições esportivas, artísticas e culturais.

Joel era um estudioso e ex-praticante de futebol. Em pouco tempo, organizou um time com os meninos do bairro, criou um campeonato com times dos bairros vizinhos e, nas manhãs dos domingos, infalivelmente lá estava com o seu time “Os Peraltas F.C.” aonde acumulava as funções de Presidente do Clube, Técnico de futebol, Juiz e o mais importante, amigo de todos os meninos, aos quais dispensava os devidos cuidados e incentivava-os a cuidarem da alimentação, exercícios e estudos, quando algum titular do time não conseguia manter a média escolar, era levado à condição de reserva na equipe. Considerado craque do bairro, Mário que vestia a camisa dez de Os Peraltas F.C. ainda acumulava as virtudes de ser recatado e muito estudioso, por isso passava algumas horas do dia no desvão da casa 37, aonde fazia as lições de casa, estudava e lia seus livros prediletos; Armando era professor de artes plásticas e a esposa Denise, dava aulas de educação física, enquanto o filho Teófilo além da escola dedicava-se ao estudo de piano, por isso estava sempre com Reinaldo.

Cíntia, professora de música e canto, dava aulas para Teófilo e Reinaldo, preparando-os para apresentações no Clube da Cidade e também no coreto da praça principal, nas tardes de sábado.

Com o passar dos anos, as crianças ficaram adolescentes e também amadureceram em suas aptidões tanto que Mercedes passou a ter aulas com o professor Armando que inseriu seus trabalhos nas exposições regionais, aonde ela vinha se destacando, conseguindo inclusive algumas premiações em concursos; Reinaldo e Teófilo eram integrantes da banda, faziam o maior sucesso e já eram reconhecidos em todo o Estado, tendo um verdadeiro fã-clube; Marília, a mais velha do grupo, aos 19 anos, mantinha um atelier de corte e costura donde retirava todo o seu sustento e ainda fazia um belo “pé de meia” para o futuro; Mário, o ex-craque dos Peraltas F.C., foi o único que não seguiu sua vocação natural. Depois de muito ler e estudar no desvão da casa 37, inexplicavelmente, tornou-se um criminoso, talvez levado por um prazer incontido pelo excesso de leitura de livros policiais, encontrados às centenas no desvão de sua casa, junto com a espingarda da qual dois tiros certeiros puseram fim à vida de Armando, morador da casa 32. O fato aconteceu numa tarde de outono, quando Mário posicionado na janela do desvão da sua casa, em que tinha uma perfeita visão da sala de visitas da casa em frente, disparou dois tiros certeiros na cabeça de Armando, que morreu debruçado sobre a mesa.

Não fossem a gravidez de Mercedes e sua confissão, até hoje, ninguém poderia justificar a atitude de Mário e o seu sumiço.