8. A CARONA DA SANTINHA

Este texto é sequência do texto 7. SOLUÇÃO DIFÍCIL.

Em algum ponto entre os municípios de Caxias do Sul e São Marcos, na Serra Gaúcha, numa parte em que a BR 116 serpenteia despenhadeiros sem fim, me deparei com uma gruta à direita da rodovia, onde havia uma santa que me causava certo medo, mas, apesar disso, resolvi contrariar minha convicções adventistas e fazer-lhe um pedido aos moldes dos mais devotos católicos. Comprometi-me de doar-lhe alguns pacotes de velas (não recordo quantos) se ao voltar-me para a estrada o primeiro carro a passar me desse carona ao Rio de Janeiro, sendo que, se tinha mesmo poder, atender a esse pedido não seria quase nada.

Finda a petição, tornei-me, andando até a beira da estrada, quando passava um Corcel II indo para o norte. Tendo parado, o motorista indagou para onde eu pretendia ir. Respondi-lhe que ao Rio de Janeiro, mas aceitaria carona de qualquer distância. Ele disse que me levaria até Santa Catarina, não mais que isto. Satisfeito, sentei no banco traseiro, pois o motorista levava outro passageiro, um senhor de uns quarenta e cinco anos, talvez da sua idade. Enquanto o veículo se afastava, olhei para a santinha e pensei que não lhe devia nada, sendo que não cria mesmo em seus milagres e o trato era uma carona até o Rio de Janeiro, mas essa seria até Santa Catarina, muito longe do Rio.

Às sete horas da manhã tínhamos saído da casa de nosso patrão, em Caxias do Sul, onde eu estava havia mais de mês e meio, desde que saíra da casa de meu pai, em São Leopoldo, mais de cem quilômetros ao sul. Eu e o colega e amigo pelotense de quinze anos, como eu, fugimos nessa manhã de um homem violento, apressado em fazer maldade, que há mais de um mês dissolvia meu salário de vendedor de cachorro quente em faltas de férias forçadas por sua matemática financeira obscura. O amigo de Pelotas também experimentara tal matemática e, após muita relutância, com um medo tremendo, decidimos que a via restante para sairmos daquele círculo abusivo era a fuga, o que fizemos após declararmos caixa zero na noite anterior, pelo que despertamos um monstro no patrão, que “pôs fogo pelas ventas”, mas não nos agrediu fisicamente e nem queixou-se a polícia, como outras vezes fizera por motivos sem tanta importância.

Saímos serenamente, frente aos olhos da empregada doméstica, que chegava bem cedo. Não portávamos mais do que alguns pães de cachorro quente. Além disso, eu levava o relógio que um freguês deixara como garantia ao pedir, três dias antes, dinheiro emprestado para pagar um taxi e levar para casa o aparelho de televisão que comprara na loja em que trabalhava. Sendo que na noite daquele mesmo dia, por causa da bronca que levei por emprestar-lhe o dinheiro, decidi que fugiria, dando fim a ciranda de abuso do patrão com nossos salários, no dia seguinte procurei-o no trabalho para devolver-lhe o relógio e resgatar o dinheiro, mas, sem saber seu nome, não o encontrei. Então levei o relógio, pois não deixaria mais isto para o patrão, além de mais de um mês de trabalho que deixava por conta das faltas de férias que ele forjava.

Seguiamos juntos, eu e meu amigo, pela avenida Júlio de Castilhos com o sol nascente a frente até o Bairro de Lurdes, no leste da cidade, onde, frente ao monumento dos imigrantes italianos, nos separamos, descendo o amigo pela BR 116 em direção ao sul, por cujo trajeto passaria por São Leopoldo e Porto Alegre, antes de chegar a Pelotas, enquanto segui subindo a mesma BR em direção ao norte, pretendendo ir a São Paulo, seguindo depois ao Rio de Janeiro.

Era em torno do meio-dia quando o Corcel II arrancou da frente da gruta da santa, na BR 116, e senti que deixava uma página difícil para atrás, livrando-me também de qualquer possibilidade de ser encontrado por aquele patrão impetuoso. Pela conversa dos tripulantes do carro, percebi que o motorista tratava-se de um distribuidor de água mineral, pois falava com o outro de uma conversa que tivera com a esposa antes de sair, a qual lhe questionara sobre certa dificuldade em bombear água do poço para encher as garrafas, e a ela ele tinha recomendado que enchesse com água da torneira até que se consertasse a bomba.

Segui a escutar em silêncio a conversa dos dois senhores, admirando a paisagem diferente dos campos de Vacaria. O carro deslizou por intermináveis subidas e decidas suaves, entre uma e outra curva leve, até mergulhar no vale do rio Pelotas, onde ouvi encantado o condutor dizer que entrávamos em Santa Catarina, enquanto contornava a curva da velha ponte. Então desfrutei da novidade de estar saindo do Rio Grande do Sul, entrando em outro Estado, onde a paisagem poderia ser completamente diferente, as pessoas bem diferentes, bem como as cidades, como se fosse um outro país, como aqueles lugares que eu só tinha visto na televisão e nos mapas da escola, dado à lonjura que distavam.

No relógio do painel do carro marcava quinze horas. Pensei que a partir desse instante o alarme já estaria tocando em Caxias, na casa do Patrão. Em mais um hora teriam chegado a conclusão de que algo de ruim poderia ter ocorrido conosco. Mas o patrão e, talvez, os outros vendedores, concluiriam muito em breve que teríamos fugido. Então, logo teria início, ou não, a busca por nós.

Após algumas curvas em uma subida íngreme, o veículo despontou numa chapada coberta de um inço parecido com trigo, mas bem ralo, por onde foi trafegando longas retas de inclinação suave, em Santa Catarina, até parar repentinamente frente a uma estrada rural para a direita, tendo deixado a divisa uns trinta quilômetros para atrás.

Embora sabendo que o patrão por ali jamais me encontraria, segui temeroso, a pé, pedindo carona para raros veículos, mas inutilmente, pois passavam em alta velocidade, sem sequer fazer menção de parar.

Após uns dez quilômetros, banhei-me num córrego a beira da estrada. A água desse córrego era tão cristalina que se podia ver ao fundo as pedras basálticas. Segui caminho insistindo em pedir carona, observando ao longe as nuvens de chuva que se acumulavam sobre o percurso por onde teria que passar. A medida que entardecia e se aproximava a chuva, o medo me espantava, então eu acelerava o passo, crendo que logo alcançaria uma cidade. A noite os faróis dos carros vindos detrás formavam a frente um circulo com as cores do arco-íris nos pequenos pingos da garoa insistente. Por vezes, o ruído estrondoso de um carro ou outro punha meu coração em disparada, acelerando ainda mais meus passos, que seguiam para lugar nenhum, pois nem mesmo uma placa surgia para dizer-me a que distância estaria o descanso.

Os ossos das pernas pareciam partidos, quando vi um placa que anunciou Lages há vinte quilômetros. Andei mais de pressa e parecia que não poderia dar mais um passo, quando cheguei no trevo de acesso a cidade. Meu corpo inteiro doía, mas caminhei ainda muito até a estação rodoviária, onde cheguei em torno de duas horas da madrugada e dormi num dos bancos como se estivesse na cama macia que deixara na casa do pai.

Wilson Amaral

Romance e Poesia
Enviado por Romance e Poesia em 14/03/2007
Reeditado em 14/03/2007
Código do texto: T412025