12. BAILE TOCADO A VAPOR

Este texto é sequência do texto 11. CUNHADO PARA A HORA DIFÍCIL.

Como sempre eufórico, porque ia fazer uma viagem inédita e distante, no antigo trem, que mais me empolgava, pois nele eu tinha andado somente uma vez, meio percurso entre as estações Sapucaia e Unisinos (no mesmo percurso do trem Metropolitano de Porto Alegre hoje), um total de dois quilômetros e meio, um pouco mais, um pouco menos, fui para a estação ferroviária de Lages umas duas horas antes do embarque.

Nesse Sábado tinha almoçado com a família do amigo vendedor de pipocas. Sua casa ficava em uma vila também ao sul da estação rodoviária, próxima a estação do trem. Esse amigo eu fizera desde quinta feira da mesma semana, quando cheguei de Caxias do Sul, onde eu estava havia mais de um mês após ter saído da casa de meu pai em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Graças a esse amigo, que tinha igualmente quinze anos, eu sobrevivera na cidade de Lages, há mais de trezentos quilômetros de casa. Seus pais e irmãos, tão simpáticos quanto ele, tinham feito questão de me receber para outro almoço em sua casa antes da partida e entre os tantos assuntos que falamos no almoço, rimos muito da história de como eu tinha ganhado dez cruzeiros de um sujeito que me confundiu com um seu cunhado no centro da cidade.

Exceto pelo mapa WikiMapia, nunca mais voltei a Lages, apenas passei por aí em viagens de ônibus ou de carro. Portanto, nunca mais vi meu amigo vendedor de pipocas, bem como seus familiares do gente que nunca mais vi, mas estarão sempre em minhas lembranças, por sua simplicidade, afeição e a maneira carinhosa como me receberam, fazendo-me sentir como um príncipe, tal foi a importância que deram a minha presença.

Após o almoço, retornei com o amigo até a estação rodoviária, onde permaneci falando de meus planos para a viagem até próximo a hora de começar a que eu imaginava que seria a viagem mais emocionante que até então eu haveria de fazer. Após as despedidas, inclusive de outras amizades que tinha feito em torno da estação rodoviária, sem nem mesmo uma sacola de mão, apenas a roupa do corpo, com que saíra de Caxias e aí chegara, e o dinheiro para a passagem, fui me encaminhando a passos lentos para a estação do trem, já deixando saudade para atrás. Enquanto me distanciava cabisbaixo, pensava que logo voltaria para reencontrar meus amigos, uma gente tão fabulosa que igual eu jamais conhecera antes, embora que já tinha conhecido pessoas magníficas nessa peregrinação.

Pela graça do cunhado improvisado que encontrei no centro de Lages, que quase tinha me convencido de que era meu cunhado, porque ele me dera dez cruzeiros, quando lhe pedi o valor de uma passagem de ônibus urbano pretendendo juntar o montante para a viagem de trem –, por causa desse cunhado eu tinha no bolso um pouco mais do que a passagem do trem e com tal dinheiro comprei um saco de pão francês de cinqüenta gramas, mais ou menos uns vinte, que eram a última comida que eu sabia que tinha e eles eu comeria com água. Depois desse, como fora quando acabou o dinheiro da falta de féria em Caxias, eu não sabia se teria algum alimento. Todavia, não estava preocupado com isto, tampouco com qualquer outra coisa. Tinha mais com o que me envolver. Depois dessa viagem fabulosa de trem os problemas secundários seriam resolvidos. Por enquanto não valia a pena ofuscar a emoção de fazer a única viagem de tem que eu faria em minha vida até hoje.

Com o saco de pão, andei os últimos passos a estação, onde esperei uns quarenta minutos, ouvindo nos últimos os murmúrios dos passageiros reclamando da demora, suspeitando que o trem não sairia. Por ali tinham muitas famílias pobres, pessoas vestidas quase como mendigos, com crianças descalças que brincavam de um lado para o outro, me preocupando porque corriam por sobre os trilhos. Fiquei a observar esses movimentos e a imaginar como seria a vida de todas essas pessoas, como viviam, o que faziam, para onde iam e o que esperavam do futuro.

Por fim o trem apareceu e poucos minutos depois estávamos embarcados. No vagão que embarquei, escolhi um banco na janela, pois haveria muito para eu ver até o anoitecer. O trem partiu deixando para atrás a cidade, tomando caminho por entre campos, às vezes, cruzando, bosques, transpondo pontes e túneis, onde se tossia um pouco sufocado pela fumaça de díesel queimado pela locomotiva. Após anoitecer, não podendo mais ver as paisagens, o que eu adorava em viagens desde bem pequeno, logo me estiquei no banco de sarrafos, segurando meu saco de pães sobre o peito. Ignorando os sulcos que os sarrafos do banco iriam fazer em minha cabeça, logo adormeci aproveitando o sacolejar do trem, que vez ou outra parava em meio a escuridão para pegar um ou outro passageiro, ou uma multidão. Nessas paradas quase sempre eu acordava, mas logo adormecia sem dificuldade, tal era o sono que eu tinha.

Em certos momentos acordava por causa das tantas conversas e riso de homens e mulheres. Por um longo tempo eu cochilava e era acordado pelo barulho das pessoas, mas voltava a dormir facilmente. Outras vezes que acordei ouvi canto e toque de gaita e violão, algo muito familiar. Mas me esforcei e dormi outras tantas vezes, pensando que poderia se tratar do rádio de pilhas de alguém com muito volume. Todavia, o som gaúcho persistia. Então prestei atenção que havia barulho e passos e arrasta pé, como dança de tablado, e esporas que riscavam o chão. Curioso, forcei para descolar meus olhos e vi que rolava solto nada mais que um baile gaúcho, improvisado entre os passageiros. Animado, segui a assistir o baile, até que ele foi enfraquecendo e por fim cessou quando já era alta madrugada. Então, após escorar a fome comendo um dos pães a seco, estiquei o corpo no banco de sarrafos e dormi até às seis horas, quando o trocador me acordou dizendo que tínhamos chegado em Mafra.

Olhei em volta por entre as janelas para ver a cidade. Achei que por estar ainda anestesiado e com os olhos grudados é que não a vi. Todavia, o trem pareceu que não ia parar. Seria que Mafra não era o fim da linha? Decerto era somente uma localidade onde havia uma parada que se tinha que sinalizar para decerr. Convencido de que era, saltei do trem em andamento, pois talvez para descer nessa parada tivesse que ser mesmo assim. Ao descer, enquanto o trem seguia, olhei em redor e me vi em meio ao campo, sem o menor vestígio de civilização. Do meu vagão, que já ia bem a frente, o trocador gritou que ainda tinha cinco quilômetros para a estação. Corri com muito esforço e como nos filmes de bang bang consegui subir no trem novamente, indo para o toalete lavar o rosto empapuçado, para depois encarar os passageiros me olhando e rindo de canto de boca.

Wilson Amaral

Romance e Poesia
Enviado por Romance e Poesia em 22/03/2007
Reeditado em 09/07/2007
Código do texto: T421537