Herança Deprimente

Asno foi meu pai que labutou a vida toda, emoldurou o esqueleto com uma fina camada de pele cheia de dobras, perdeu os dentes, por conta disto, só toma sopa, para me dar dois pares de dentaduras.

À noite, embebidas em um copo com água, graciosamente elas sorriem para mim. Dentarias fúnebres que conseguem reunir agradecimento, austeridade e ira numa esfuziante e barulhenta batedeira só. No dia seguinte, a água está viscosa, talhada e de cor escarlate. Vou ao espelho, quando a claridade está disponível às minhas vistas, e noto que não sou mais o mesmo, pois me falta um pedaço.

Olho no piso do quarto e lá está um dente, que era postiço; vejo também uma mancha de sangue na parede despejada pelos pernilongos atormentadores na madruga. Insanamente, gargalho destas bestialidades rotineiras.

Mas por favor, porque foi lembrar-me daquilo que sorrio para não lembrar. E saber que os meus segundos estão escasseando, é morte precoce e silenciosa. Maldito presente herdado de família. Todos os meus irmãos morreram possuídas por essas pragas.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 03/11/2016
Reeditado em 05/11/2016
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